era uma vez em tóquio
de Yasujiro Ozu, Tokio Monogatari, 1953, Japão

O tempo de viver e o tempo de morrer

Estamos tão mal acostumados em nossos hábitos que por vezes caímos na armadilha e acreditamos que todos os filmes de Yasujiro Ozu são a mesma coisa. Levados por uma preguiça semelhante, às vezes pode nos ocorrer que seu estilo cinematográfico e sua filosofia de vida são “muito japonesas”, atribuindo a singularidade de seu cinema a um certo vício de observar o exótico, e assim se ver livre de pensar em cinema. Pois bem: Yasujiro Ozu faz filmes sobre família, sobre a passagem do tempo, sobre morte, sobre a rigidez dos códigos sociais, sobre solidão, sobre a passagem das pessoas por diferentes estágios da vida (solteira/casada, jovem/adulto, vivo/morto). Até segunda ordem, o tempo passa, as pessoas morrem e também têm família no ocidente. Da mesma forma, um filme sobre um casal de velhos que visita Tóquio não é igual a um filme sobre um casal de meia-idade vindo de classes diferentes, que não é igual a um filme sobre casamento arranjado de uma mulher chegando à casa dos 30. Por mais parecidos que sejam, grandes filmes nunca são iguais a nada; faz parte de sua natureza serem completamente únicos. E Ozu fez uma penca deles.

Mas esses dois mal-entendidos sobre o cinema de Ozu revelam um certo mal-estar, uma certa dificuldade em externar qualquer coisa depois que se vê um ou mais de seus filmes. A tamanha depuração do plano cinematográfico, o ritmo completamente inaudito do encadeamento de planos e de seqüências (e, claro, os extraordinários planos entre seqüências), os fatos narrativos levados a extremos de simplicidade, a minuciosa composição do quadro, tudo isso geralmente provoca sensações mais do que argumentos. E quando tentamos explicar essas sensações, aparecemos com características negativas (“ele não move a câmera”, “os atores não são exagerados”, coisa do tipo), procedimento que está longe de chegar a algum lugar na tentativa de definir o cinema de Yasujiro Ozu.

Falemos então de Era uma Vez em Tóquio, e de como o roteirista Kogo Noda e Yasujiro Ozu conseguiram realizar uma meditação em várias camadas sobre o tempo. “Os tempos mudaram, temos que encarar esse fato”, diz o sr. Hirayama a seus amigos de bebedeira; “O que você vai ser quando crescer? Um médico como seu pai? Quando você se tornar um médico, me pergunto se ainda estarei viva”, diz a sra. Hirayama a seu neto mais novo, que, brincando, nem ouve o que ela fala. De um lado, o uso do tempo é diferente para cada personagem: há aqueles que dispõem de tempo para dar a seus entes queridos (o casal Hirayama e Noriko, sobretudo) e há aqueles que fazem do tempo um uso egoísta, sem apego emocional à família e pensando de forma utilitária até nas situações mais extremas (“É bom levar roupa de luto”, diz Shige). De outro, o comportamento não é tanto questão de moral, mas de idade: é a condição de mãe de família que faz Shige desapegar-se da família de seus pais, assim como a própria Noriko, depois de oito anos, já não pensa tantas vezes em seu finado marido quanto pensava antes. Essa convivência com o tempo não é nada fácil, e leva uma das personagens a perguntar “A vida não é frustrante?” a Noriko, ao que ela responde de forma serena com uma afirmativa. Uma vez que é impossível parar o tempo, o jeito é ter com ele uma relação mais honesta, reconhecer sua força, aceitar de bom grado submeter-se a seus rearranjos.

Esse amor fati, essa entrega ao destino, porém, não se realiza só no campo da temática e da história que está sendo contada. Ao contrário, ela se instala profundamente em cada seqüência do filme, em cada plano marcante. Como o último: um trem vai para um lado, um barco vai para outro, mas ambos se movem e em alguns momentos não estarão mais em nosso campo visual. Essa grande mescla de fixidez com instabilidade, Ozu conseguiu equacionar melhor com seus planos “natureza morta”, de corredores ou aposentos vazios, varais, postes, fachadas de prédios, planos gerais de paisagem. Neles, há sempre um geometismo em que, ausente a figura humana, dominam as linhas verticais e horizontais, criando uma espécie de rede imaginária. Mas, quebrando a harmonia e a estática da composição, há sempre algum elemento estranho, um fio diagonal, algo que remete para o fundo ou para o fora da tela, e desestrutura as expectativas, assim como o tempo desordena os arranjos prévios.
Yasujiro Ozu é um historiador sutil. Filmando a transformação do tempo em disposição utilitária, ele faz uma fina análise da reconstrução japonesa do pós-guerra nos moldes capitalistas. Quanto mais novas as gerações, quanto mais citadinas, mais desapegadas elas ficam à tradição. Uma avó pode ser uma curiosidade, mas quando ela desaloja a escrivaninha, ela é um fardo. Se não há tempo nem espaço para instalar os pais, compra-se uma temporada num spa. Uma vez morta a mãe, volta-se a Tóquio o mais rápido possível. Reificação do convívio familiar e do tempo: o tempo é algo que se compra, que se converte em trabalho (“Um médico ocupado é um médico bom”, a falta de tempo de Shige), mas que não consegue se converter em afetividade. O uso do tempo como gozo, com seus princípios de delicadeza e fruição, é feito apenas pelos anciãos e por Noriko: clímax de felicidade quando o sr. Hirayama enche a cara com os amigos enquanto a sra. Hirayama recebe uma massagem de Noriko. Assim, não é estranho que Shige exploda quando o pai aparece trêbado em sua casa: ele violou a regra tácita que diz que não se deve gozar o tempo. Esse gozo do tempo, Ozu é o primeiro a respaldar, heroicizando seus beberrões não só como os personagens mais interessantes mas também como os mais sábios, nos fazendo atentar para o sabor do arroz no chá verde, os climas dos dias de outono, das primaveras precoces ou dos fins de verão, flores, ervas ou o gosto do saquê (verdadeiro título de A Rotina Tem seu Encanto). Chishu Ryu e Setsuko Hara, respectivamente o grande ator de Ozu (participou de 31 filmes com ele) e sua grande atriz (apenas seis filmes, mas todos decisivos), terminam sozinhos, mas cientes de que ganharam seu desafio com o tempo: eles estão dispostos ao que o futuro lhes reserva.

Ruy Gardnier



Filmografia

1927 Zange no yaiba (A Espada da Penitência*)
1928 Wakodo no yume (Sonhos de Juventude*)
1928 Nyobo funshitsu (Esposa Perdida*)
1928 Kabocha (Abóbora*)
1928 Hikkoshi fufu (Um Casal de Mudanças*)
1928 Nikutaibi (Um Corpo Magnífico*)
1929 Takara no yama (Montanha do Tesouro*)
1929 Gakusei Romance: Wakaki hi (Dias de Juventude*)
1929 Wasei kenka tomodachi (Amigos de Luta*)
1929 Kaishain seikatsu (A Vida de um Empregado*)
1929 Daigaku wa deta keredo (Eu Passei de Ano, Mas...*)
1929 Tokkan kozo (Um Rapaz Honesto*)
1930 Kekkon gaku nyumon (Introdução ao Casamento*)
1930 Hogaraka ni ayume (Marchai Alegremente*)
1930 Rakudai wa shita keredo (Eu Repeti de Ano, Mas...*)
1930 Sono yo tsuma (Mulher de uma Noite*)
1930 Erogami no onryo (Eros Vingativo*)
1930 Ashi ni sawatta koun (Chance Perdida*)
1930 Ojosan ( Senhorita*)
1931 Shukujo to hige (A Mulher e os Favoritos*)
1931 Bijin aishu (As Infelicidades da Beleza*)
1931 Tokyo no gassho (O Coro de Tóquio*)
1932 Haru wa gofujin kara (A Primavera Vem das Mulheres*)
1932 Otona no miru ehon – Umarete wa mita keredo (Eu Nasci, Mas...)
1932 Seishun no yume imaizuko (Onde estão os Sonhos da Juventude*)
1932 Mata au hi made (Até Nosso Próximo Encontro*)
1933 Tokyo no onna (Mulher de Tóquio*)
1933 Hijosen no onna (Mulheres em Luta*)
1933 Dekigoroko (Coração Caprichoso*)
1934 Haha wo kowazuya (Uma Mãe Deve ser Amada*)
1934 Ukigusa Monogatari (Uma História de Ervas Flutuantes)
1935 Hakoiri musume (Uma Jovem Pura*)
1935 Tokyo no yado (Um Hotel em Tóquio*)
1936 Kikugoro no kagamijishi [cm, documentário]
1936 Daigaku yoi toko (A Escola é um Lugar Agradável*)
1936 Hitori musuko (Filho Único)
1937 Shujuko wa nani o wasuraetaka (O Que esta Mulher Esqueceu?*)
1941 Todake no kyodai (Os Irmãos e Irmãs Toda*)
1942 Chichi ariki (Ele é um Pai)
1947 Nagaya shinshiroku (Discurso de um Proprietário)
1948 Kaze no jaka no mendori (Uma Galinha no Vento*)
1949 Banshun (Pai e Filha)
1950 Munakata shimai (As Irmãs Munekata)
1951 Bakushu (Também Fomos Felizes)
1952 Ochazuke no aiji (O Sabor do Chá Verde sobre o Arroz)
1953 Tokyo monogatari (Era uma Vez em Tóquio)
1956 Soshun (Começo de Primavera)
1957 Tokyo boshoku (Crepúsculo em Tóquio)
1958 Higanbana (Flor de Equinócio)
1959 Ohayo (Bom-Dia)
1959 Ukigusa (Ervas Flutuantes)
1960 Akibiyori (Dia de Outono)
1961 Kohayagawe ke no aki (Fim de Verão)
1962 Sanma no aji (A Rotina Tem Seu Encanto)

* simples tradução, filmes sem título no Brasil