PARALELAS E TRANSVERSAIS
Os Heróis e o Tempo, de Arturo Ripstein
A Dignidade dos Ninguéns, de Fernando Solanas


Los héroes y el tiempo, México, 2005
La dignidad de los nadies, Argentina/Suiça/Brasil, 2005


A Dignidade dos Ninguéns e Os Heróis e o Tempo: opções distintas sobre as possibilidades de ação política no contexto latino-americano do início do século XXI. Enquanto Arturo Ripstein se deixa contaminar pelo conformismo e revisionismo dos ex-guerrilheiros socialistas, agora burgueses, que entrevista, Fernando Solanas, apesar de reconhecer a falta de mudanças reais geradas pelas revoltas contra a crise econômica da Argentina a partir de 2001, alia-se quase utopicamente aos movimentos sociais e aos “ninguéns” que homenageia, acreditando no poder de resistência e na rede de solidariedade que eles originam.

Arturo Ripstein volta a entrevistar os ex-guerrilheiros mexicanos de orientação marxista com os quais realizou, em 1976, o documentário Lecumberri. Trinta anos depois de encarcerados e torturados pela repressão do PRI (Partido Revolucionário Institucional), o que teriam eles a dizer sobre os velhos tempos e sobre as injustiças que se perpetuam no México de hoje? Em número de quatro, todos muito bem instalados dentro da economia neoliberal que rege o país desde o acordo de livre-comércio do NAFTA e da eleição de Vicente Fox para a presidência da república, os antigos presos políticos se lembram dos presídios onde estiveram e das violências que sofreram – sobretudo, porém, demonstram remorso pelos ideais que sonharam e decepção com as lutas que travaram para melhorar a realidade. Ao trocarem de lado (são médicos e altos executivos da Pemex, por exemplo), eles se tornaram críticos azedos e ressentidos das próprias ações, pois creditam o efetivo fracasso de suas práticas do passado às supostas ignorância e inocência que os moviam. Mais do que apenas reavaliar os erros que cometeram, os ex-revolucionários enxergam na utopia em si o defeito a ser combatido e extirpado, negação embasada nos novos compromissos que estabeleceram, ao longo das últimas décadas, com a democracia liberal mexicana. Ripstein, ao tão somente dar voz aos entrevistados, sem todavia contestá-los em suas posições pessimistas e conservadoras, passa a adotá-las como discurso que permeia e estrutura Os Heróis e o Tempo.

A Dignidade dos Ninguéns, ao contrário, aposta no sonho: entremeando imagens das grandes passeatas organizadas pelos “piqueteiros” contra a crise econômica que desvalorizou o peso, levou ao confisco da poupança e à moratória da dívida externa, com entrevistas que apresentam a luta diária de participantes específicos das manifestações em foco, Fernando Solanas ainda crê na força da participação popular e, em conseqüência, na política enquanto instrumento de melhorias e de transformações sociais. Da mesma forma que Ripstein, Solanas também percebe a caducidade das ideologias revolucionárias de esquerda e de seus métodos violentos em relação à conjuntura democrática e globalizante que norteia a Argentina atual, bem como o vazio deixado pela ausência das respostas utópicas aos problemas concretos enfrentados pelos “ninguéns” que dão alma ao filme. Contudo, diferente de Os Heróis e o Tempo, A Dignidade dos Ninguéns encara as lutas de resistência ainda possíveis – organizar almoços coletivos para os que não têm o que comer, impedir os leilões das terras dos pequenos proprietários entoando o hino nacional, sobreviver catando lixo e ocupando casa que sofre com enchentes, ajudar um desconhecido vítima da brutalidade policial – como estratégias tão válidas para a afirmação identitária dos grupos envolvidas quanto as utilizadas anteriormente, no calor da ditadura militar que assolou o país nos anos 70.

Se Ripstein permite que a desilusão dos personagens se aposse de Os Heróis e o Tempo, Solanas prefere acompanhar de perto e interagir com as ações e com as histórias que mostra, na medida em que outorga a si mesmo o papel de narrador em A Dignidade dos Ninguéns. Homenageando Fernando Birri, cujo Tire Dié introduziu a narração em off crítica e incisiva (que não apenas segue os fatos, mas antes os comenta) no documentário latino-americano, Fernando Solanas une seu próprio discurso de contestação aos dos movimentos sociais e dos anônimos que exalta, com olhar carinhoso que remete aos contos-de-fada com finais felizes. Em outras palavras, enquanto Os Heróis e o Tempo se contenta em beijar sapos, A Dignidade dos Ninguéns parte corajosamente em busca de príncipes encantados.

Paulo Ricardo de Almeida