A Dignidade dos
Ninguéns e Os Heróis e o Tempo: opções distintas
sobre as possibilidades de ação política no contexto
latino-americano do início do século XXI. Enquanto Arturo
Ripstein se deixa contaminar pelo conformismo e revisionismo
dos ex-guerrilheiros socialistas, agora burgueses, que
entrevista, Fernando Solanas, apesar de reconhecer a
falta de mudanças reais geradas pelas revoltas contra
a crise econômica da Argentina a partir de 2001, alia-se
quase utopicamente aos movimentos sociais e aos “ninguéns”
que homenageia, acreditando no poder de resistência
e na rede de solidariedade que eles originam.
Arturo Ripstein volta a entrevistar os ex-guerrilheiros
mexicanos de orientação marxista com os quais realizou,
em 1976, o documentário Lecumberri. Trinta anos
depois de encarcerados e torturados pela repressão do
PRI (Partido Revolucionário Institucional), o que teriam
eles a dizer sobre os velhos tempos e sobre as injustiças
que se perpetuam no México de hoje? Em número de quatro,
todos muito bem instalados dentro da economia neoliberal
que rege o país desde o acordo de livre-comércio do
NAFTA e da eleição de Vicente Fox para a presidência
da república, os antigos presos políticos se lembram
dos presídios onde estiveram e das violências que sofreram
– sobretudo, porém, demonstram remorso pelos ideais
que sonharam e decepção com as lutas que travaram para
melhorar a realidade. Ao trocarem de lado (são médicos
e altos executivos da Pemex, por exemplo), eles se tornaram
críticos azedos e ressentidos das próprias ações, pois
creditam o efetivo fracasso de suas práticas do passado
às supostas ignorância e inocência que os moviam. Mais
do que apenas reavaliar os erros que cometeram, os ex-revolucionários
enxergam na utopia em si o defeito a ser combatido e
extirpado, negação embasada nos novos compromissos que
estabeleceram, ao longo das últimas décadas, com a democracia
liberal mexicana. Ripstein, ao tão somente dar voz aos
entrevistados, sem todavia contestá-los em suas posições
pessimistas e conservadoras, passa a adotá-las como
discurso que permeia e estrutura Os Heróis e o Tempo.
Já A Dignidade dos Ninguéns, ao contrário, aposta
no sonho: entremeando imagens das grandes passeatas
organizadas pelos “piqueteiros” contra a crise econômica
que desvalorizou o peso, levou ao confisco da poupança
e à moratória da dívida externa, com entrevistas que
apresentam a luta diária de participantes específicos
das manifestações em foco, Fernando Solanas ainda crê
na força da participação popular e, em conseqüência,
na política enquanto instrumento de melhorias e de transformações
sociais. Da mesma forma que Ripstein, Solanas também
percebe a caducidade das ideologias revolucionárias
de esquerda e de seus métodos violentos em relação à
conjuntura democrática e globalizante que norteia a
Argentina atual, bem como o vazio deixado pela ausência
das respostas utópicas aos problemas concretos enfrentados
pelos “ninguéns” que dão alma ao filme. Contudo, diferente
de Os Heróis e o Tempo, A Dignidade dos Ninguéns
encara as lutas de resistência ainda possíveis –
organizar almoços coletivos para os que não têm o que
comer, impedir os leilões das terras dos pequenos proprietários
entoando o hino nacional, sobreviver catando lixo e
ocupando casa que sofre com enchentes, ajudar um desconhecido
vítima da brutalidade policial – como estratégias tão
válidas para a afirmação identitária dos grupos envolvidas
quanto as utilizadas anteriormente, no calor da ditadura
militar que assolou o país nos anos 70.
Se Ripstein permite que a desilusão dos personagens
se aposse de Os Heróis e o Tempo, Solanas prefere
acompanhar de perto e interagir com as ações e com as
histórias que mostra, na medida em que outorga a si
mesmo o papel de narrador em A Dignidade dos Ninguéns.
Homenageando Fernando Birri, cujo Tire Dié introduziu
a narração em off crítica e incisiva (que não
apenas segue os fatos, mas antes os comenta) no documentário
latino-americano, Fernando Solanas une seu próprio discurso
de contestação aos dos movimentos sociais e dos anônimos
que exalta, com olhar carinhoso que remete aos contos-de-fada
com finais felizes. Em outras palavras, enquanto Os
Heróis e o Tempo se contenta em beijar sapos,
A Dignidade dos Ninguéns parte corajosamente em
busca de príncipes encantados.
Paulo Ricardo de Almeida
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