CIDADE BAIXA
Sérgio Machado, Brasil, 2005

Há uma vibração acelerada nos corpos envolvidos em tensões – sejam elas atrativas ou repulsivas – e um nervosismo impaciente, parte de paixões e agressões. Esta pulsação, um tanto aflita, é o que orienta Cidade Baixa através dos movimentos dos seus personagens. O ritmo intenso de sua narrativa fílmica é pautado pelos grãos da película, pela movimentação de uma câmera que se esforça para captar o que acontece (que acontece não-observante do seu campo de visão) e pela montagem que não se preocupa com uma continuidade de tempo-espaço sem arestas.

Deco, Naldinho e Karinna impregnam a imagem de Sérgio Machado. Polarizados num triângulo fechado demais para permitir qualquer expressão mais livre, eles entram num conflito inevitável, estiramento de todas as confusões que se passam entre eles. Gostar, se sentir atraído, ferver de desejo, ter ciúmes, agitar-se de raiva, irritar-se, perder a paciência, estourar – tudo acaba acontecendo meio sem distinção, em superposição ou em seqüência, sem ordem alguma, num espaço que abriga ao mesmo tempo em que repele. Porque a Cidade Baixa é um lugar pra se fazer algum dinheiro, pra se viver a vida, mas também um lugar que impregna os seres que o habitam de forma pegajosa, um lugar que parece possuir uma energia perniciosa. Talvez outra vida fosse possível fora dali, uma vida de movimentos mais amplos e mais largos. Mas é ali que eles compartilham um tempo e uma vivência, que se saturam uns dos outros, se afastam e voltam a se chocar.

O caminho que percorrem, da partida do filme até seu fim, é bastante "reconhecível": dois amigos do peito, que se conhecem desde a infância, encontram uma prostituta e forma-se um triângulo que gerará a disputa entre estes dois. Mas o desenrolar que esperamos de tal argumento "típico" nunca vem. Pois Cidade Baixa é um filme de personagens, que se mantém sobre uma tênue linha entre a narrativa de uma história e a picturização de indivíduos. Karinna, além de ser a prostituta, é uma pessoa que tem prazer, que precisa ganhar dinheiro, que faz amizades, que é repleta de inseguranças... Deco, além de ser o negro amigão, é um homem de decisões fortes, de sentimentos firmes, de grande auto-confiança... E Naldinho, para além de ser aquele cara malandro e debochado, que só pensa em se dar bem, é um homem orgulhoso, um amigo dedicado, um sujeito explosivo e possessivo... O multi-facetamento destes personagens, suas constantes mistura e confusão e freqüente indefinição (inclusive na imagem, por meio de borrões, saídas de foco, movimentos não-ordenados) abre um campo de fruição da narrativa que está menos relacionado ao que acontece do que a como acontece. É mais importante perceber os olhares, os movimentos corporais, os traços descritos pelos gestos. Sentir a tensão que une um plano a outro, um movimento a outro, acompanhar os contatos dos corpos e deixar-se instalar sensorialmente no clima sugerido. Clima criado, prioritariamente, por uma interação atores-espaço e encenação-câmera. A criação de um todo orgânico entre atores e espaço (integrados de forma inter-dependente), que parece existir de forma autônoma em relação à câmera, não se dá em torno de um naturalismo ilusionista, mas de um realismo expressivo. O filme parece vivo, para além dos cortes. Vivo na intensidade de um ritmo compassado, tenso, muito ajudado pela trilha sonora. A câmera, em sua movimentação quase-caótica, se esforça para captar o que acontece como se testemunhasse um evento que escapa ao seu controle, que obedece a leis próprias. O movimento errático dos personagens em relação a este quadro, movido por um misto indistingüível de desejo e violência, deixa então transparecer a idéia de que há sempre algo que escapa do campo visível, seja porque esta câmera não é capaz de restituir as oscilações do mundo e das pessoas, seja porque nem tudo se dá a ver em termos narrativos e inteligíveis. No entanto, não ficamos com a sensação de que há um universo que nos foge ou que estamos visando um fragmento incompleto de um todo inapreensível. Seguimos um fluxo preciso e um quê delimitado como algo em que vale a pena se fixar e dirigir a atenção, pelo prazer do relato em imagens.

Há qualquer coisa em comum nos filmes dos colaboradores e amigos Karim Aïnouz, Marcelo Gomes e Sérgio Machado (Madame Satã, Cinema, Aspirinas e Urubus e Cidade Baixa, respectivamente): um gosto pela imagem um pouco incomum no cinema brasileiro e que os destaca no seu cenário contemporâneo (embora estejam em diálogo direto com ele), configurando algo bastante raro: a condução de uma narrativa de sentimentos "exteriorizada" na forma fílmica – o que dá a eles um certo ar de "Movimento". Gerar profundo interesse pelos corpos como manifestação da existência e fazer a imagem retratar uma sensação, seja por sua configuração plástica em si, seja pela organização do seu encadeamento, é algo empreendido pelos três, com resultados diversos, com maior ou menor sucesso.

No caso de Cidade Baixa, esta "verdade sensória" almejada é do âmbito de uma urgência tensa, caracterizada pelo indefinível misto atração-repulsão. Esta sensação de que há algo prestes a explodir a qualquer momento, que permeia os personagens, suas expectativas e seus atos, ecoa também uma certa violência urbana bastante atual (para nossa realidade e para nosso cinema) e dificilmente captada em narrativas específicas sobre a questão, como os filmes que giram em torno das favelas cariocas. A relação entre os três vértices do triângulo de Cidade Baixa, como expressa pela imagem do filme, instaura um clima e provoca um estado de espírito. Ambos partem dos sentimentos emanados pelas situações retratadas, mas reverberam para além da narrativa que o filme empreende. Valem como experiência. O que configura uma afirmação cinematográfica de valor incomensurável.


Tatiana Monassa