UM CONTO DE CINEMA
A hora e a vez da indústria cinematográfica coreana

Million dollar babies

Entre a grande cinematografia em ascensão no mundo e a velha Hollywood, existe um trauma histórico em comum. Para um cinema que vive do final dos anos 90 para cá seu baby boom industrial (houve uma era dourada na década de 60, mas não existia, por exemplo, uma multinacional como a Samsung bancando mega-estúdios), é no mínimo instigante que seu substrato mais comum diga respeito a uma causalidade sócio-histórica, bastante particular no seu aspecto fratricida, que muitos dos filmes de sucesso extraordinário na bilheteria não cansam de repisar. Prova maior disso, justamente os dois maiores fenômenos de público do atual cinema sul-coreano, Shiri – Missão Terrorista e A Irmandade da Guerra (Taegukgi, que veio direto em DVD no Brasil), ambos dirigidos por Kang Je-gyu, são duas estocadas profundas – pois se trata mesmo de uma relação quase masoquista com a história da nação dividida – na ferida mal cicatrizada após a guerra que matou mais de 3 milhões de pessoas no início dos anos 50, exorbitância numérica que curiosamente está muito próxima do que Shiri fez em termos de espectadores à época de sua trajetória comercial, em 1999. Mas depois de cinco anos e de acrescidos muitos outros investimentos no cinema coreano, A Irmandade da Guerra (lançado no ano passado, e hoje a bilheteria recorde) e Silmido (também de 2004, e segundo no ranking dos cifrões) ultrapassaram as 10 milhões de admissões em salas de cinema na Coréia. O assunto que levou toda essa multidão a ver esses filmes? A guerra, é óbvio.

Shiri, rodado em estilo épico em 1998 e lançado de forma absolutamente arrebatadora em 1999 (desbancando na bilheteria, entre outras coisas, Titanic), foi tudo de que os coreanos precisavam para acreditar no potencial industrial de seu cinema. Combinando desde um artesanato à Hong Kong (e aí é de se pensar menos em Tsui Hark e Johnnie To do que em todo o segundo escalão) até um arcabouço dramático clássico-hollywoodiano, é um filme de ação que – por trás de sua velocidade feroz e dos códigos de gênero incrustados em seus protagonistas – recoloca a defasagem política e econômica entre as duas Coréias como um assunto muito próximo do espectador, mais precisamente como um assunto doméstico. É até sem muita surpresa que, lá pela metade do filme, descobrimos que a perigosa terrorista norte-coreana procurada por Ryu, jovem policial aplicado e competente, dorme com ele todas as noites: ela é sua noiva, Hyun. Os dois estão aparentemente apaixonados, mas às vezes surgem atribulações por conta de um estranho alcoolismo a que Hyun sucumbe sem que ele consiga entender o motivo exato. Ela se disfarça como vendedora de aquários (de onde sai o título do filme, o nome de um peixe dourado) e mora já com Ryu, mas sai escondida e comete atentados (sempre fatais e infalíveis) a cientistas, políticos, chefes de segurança pública e outros donos de cargos de peso. Hyun é o heterônimo escolhido por Hee, a máquina mortífera supertreinada para participar das ações que atapetariam a reunificação do país – desejo do norte que o sul nega tautologicamente, constituindo, no caso de Shiri, seu próprio contracampo cego (no sentido de negado à justa medida que prescinde de qualquer explicação).

Guerra entre norte e sul: a situação histórica semelhante a um determinado período da trajetória norte-americana – é claro que nos EUA do século XIX não se tratava de um confronto entre liberalismo e comunismo, mas é preciso estabelecer o paralelo a partir do perfil interno do embate – e o entrecruzamento propriamente dito de economias e sociedades (o processo há muito conhecido: a ajuda americana à Coréia do Sul e a posterior colonização/fagocitose cultural) dão ao cinema coreano a mesmíssima propensão, tão característica e tão parte essencial da força política do cinema hollywoodiano, a articular duas esferas a princípio distanciadas. O que equivale a dizer: o cinema coreano trata, tão bem quanto a longeva cultura audiovisual americana, de introduzir no espaço doméstico a vida política em tom de folhetim, de remeter o íntimo ao coletivo, de tragar para dentro de um mesmo nicho narrativo os gestos individuais e as repercussões grandiosas (a casa é o mundo). Será que podemos pensar que a existência de um grande tema nacional, a exemplo de uma guerra civil que ainda se faça presente, é a premissa para o desenvolvimento de uma tal arte das multidões, ou seja, uma arte que sabe manipular com precisão as emoções de massa? No meio do caminho, como se não bastasse o trauma da segmentação do território, existem as sombras espessas de uma ditadura militar que só terminou no final dos anos 80 e, ao longo de sua gestão, suprimiu de forma brutal toda base de democracia popular. Por baixo dos filmes coreanos de grande ou mega bilheteria, portanto, reside uma placa tectônica sempre pronta para fazer tremer a História. Os temas mais palpitantes do cinema coreano giram em torno do 38º paralelo (a linha imaginária que divide o território coreano ao meio) e da política atribulada que irradia dos centros governantes do país.

Internal Affairs

Os melhores exemplos em relação a isso, por enquanto, continuarão sendo Shiri e Taegukgi/A Irmandade da Guerra, não por acaso os pontos, respectivamente, de re-contato e superação do cinema coreano junto ao público de massa. Se hoje existe um filme hollywoodiano como Sr. e Sra. Smith, em 1999 Kang Je-gyu já mostrava Hyun/Hee tendo como missão matar seu futuro marido. Tragédia conjugal destinada a encobrir melodramaticamente o retrato de um povo fraturado ao meio, Shiri é um épico suicida que reabsorve a conturbação histórica em um movimento de grua que sobe até enquadrar o horizonte sobre o mar azul. Aquele é o último plano do filme, portanto já vimos Ryu se achando impelido a matar Hyun/Hee para salvar o chefe da nação. As forças se re-equilibram a favor do Sul: o grupo terrorista formado por indivíduos violentamente treinados no Norte, e que havia roubado um poderoso líquido explosivo, é interceptado e morto. A tristeza pela morte de Hyun/Hee é uma tristeza verdadeira por parte do filme – mas é também uma tristeza "necessária", uma ferramenta de harmonia. "A realidade da separação da Coréia fez ela se tornar Hydra, a deusa de seis cabeças da mitologia grega", diz Ryu durante um duríssimo interrogatório por conta de seu envolvimento pessoal com uma terrorista (nada de condolência por parte das autoridades sul-coreanas). Hee e Hyun, para ele, são pessoas totalmente diferentes, "a Hydra da nossa era". No fim das contas, Ryu descobre que ela realmente o amava, que havia um bom coração por trás da obstinação cega, do fanatismo político, da missão suicida. Melancolia otimista: o sentimento humano é capaz de reconciliar as duas Coréias (o vazio do discurso clichê é mais uma ferramenta do filme, antes de ser uma deficiência admitida).

Enquanto Shiri era um blackout histórico disfarçado em depuração do sentimento de nação, um apagão político que visava um horizonte teleológico difícil de ser digerido, A Irmandade da Guerra já dispara na tentativa de tomada de consciência através da violência do registro e da autocrítica permanente. Trata-se de dizer o que havia – e há, portanto – de perverso naquela coisa de ganhar uma guerra às custas da rendição econômica aos EUA e de enterrar os cadáveres com ares de falso heroísmo. Nesse segundo filme o mergulho é mais profundo, pois não só introduz a ficção no campo de batalha propriamente dito, com toda a pompa de uma superprodução, como também mostra dois irmãos de sangue sendo separados e colocados em posições antagônicas pelas circunstâncias da guerra. Mais uma vez, a problemática histórica se implanta dentro de casa. Jin-tae (Jang Dong-kun, que dois anos antes já fizera um soldado perturbado em The Coast Guard, de Kim Ki-duk) e Jin-seok são os dois irmãos que vão para a guerra juntos, após uma campanha de recrutamento forçado. O primeiro é um sapateiro semi-analfabeto, que abandonou os estudos e foi trabalhar para ajudar a família. Seu sonho é ver o irmão Jin-seok numa faculdade – ao menos é assim que ele justifica ter sacrificado seus próprios estudos. A guerra muda tudo, porém: Jin-tae acha sua vocação no ambiente selvagem e agressivo do campo de batalha, chegando a ser condecorado com medalha de honra, enquanto o irmão cada vez mais se distancia dele, não o reconhecendo mais naquela pessoa violenta e belicamente obstinada (uma "tática" que é puro instinto).

A Irmandade da Guerra migra de um formato acadêmico, tônica dominante na primeira parte, para uma estética de desorientação e imediatismo jornalístico bastante em voga nos filmes de guerra pós-O Resgate do Soldado Ryan, e que fica mais evidente nas cenas de batalha. Somem as gruas e os travellings calmos do início e entram uma câmera tremida e uma montagem em cortes rápidos, muitas vezes dilacerantes. A violência que Kang filma é brutal e crua; o sangue, os corpos se espatifando pelos ares e as explosões monumentais estão em número exagerado mesmo para um filme de guerra. A oposição que se cria é antiga conhecida do cinema de gênero (western, por exemplo): bestialidade e humanismo, selvageria e civilização, rudeza e educação. Jin-tae não sabe a diferença entre democracia liberal e comunismo, luta apenas de forma visceral. Tanto que depois que ele volta para o vilarejo de onde saíra e vê a jovem de quem gosta sendo morta por suspeita de colaboracionismo comunista, somando-se ao fato de achar que seu irmão mais novo foi queimado junto a outros soldados por ordem do próprio exército sulista, Jin-tae perde as estribeiras de tal modo que vai parar no lado oposto, no exército comunista. O que Jin-tae mostra, virando a casaca ao longo do filme, é que a fronteira entre sul e norte é perfeitamente permeável – e está totalmente suscetível às questões do coração. Mas Jin-tae morre e Jin-seok sobrevive, depois de um intenso combate em que os dois irmãos se reencontram, agora em lados opostos, e ocorre uma catarse com o pano de fundo estrondoso de um ataque aéreo. Morre o rude, que num último e insano momento ainda atira contra o exército do norte, e fica o educado. Quando a guerra termina, resta voltar aos estudos. É o que diz a criança que Jin-seok encontra ao retornar à casa: "Quero voltar para a escola, e você?". "Claro que sim", ele responde. A vitória do sul, de certa forma, foi para o filme uma vitória da educação, do bom senso – e, por que não dizer, da boa índole.

Vitória também de um modelo orçamentário que as bilheterias aprovaram. Como diz Kyung Hyun Kim (pesquisador, crítico e também produtor de filmes coreanos independentes) na Film Comment de novembro/dezembro de 2004, mesmo com o sucesso incalculável do cinema mainstream, os diretores independentes coreanos encontram cada vez mais dificuldades para produzir e distribuir seus filmes, a ponto da cena que eles representam ter ficado reduzida a uma das menos expressivas do leste asiático. O único independente que provou algum sucesso nos últimos dez anos, embora sendo um sucesso em relação somente ao pouco que se espera comercialmente de um "cinema de autor" (A Virgem Desnudada por seus Celibatários ter vendido 100.000 ingressos já foi considerado um sucesso), foi Hong Sang-soo – antes que achem que foi um lapso: Kim Ki-duk só vende seus filmes para o público dos "cinemas de arte" na Europa, nos EUA e alhures: na Coréia não há público efetivo para ele, que lançou tanto Samaria quanto Casa Vazia com centenas de cópias no ano passado e deu cano total na distribuidora. A elevação dos paradigmas de investimento e retorno financeiro dos filmes de gênero é um problema para os cineastas de baixo orçamento e experimentação estética mais ousada, ou simplesmente para os filmes que fogem às novas convenções da indústria (Untold Scandal vendeu mais de 3 milhões de ingressos em 2003, ou seja, movimentou o mesmo caixa do mega-ovacionado Shiri, mas mesmo assim, à luz da dezena de milhões de Silmido e Taegukgi, hoje é considerado apenas um meio-sucesso). Na Coréia não há, também, o que aqui conhecemos por cinemas-bistrô ou lá fora se chama de circuito arthouse. Mais do que qualquer outra cinematografia, eles vivem a era dos blockbusters e dos multiplexes – mas em compensação há uma série de festivais de pequeno e médio porte com freqüência que vai de boa a razoável, principalmente por parte do público jovem/adolescente.

A planificação das estruturas de produção e exibição dificulta a vida de quem não pode concorrer com o próximo blockbuster de Kang Je-gyu ou Kang Woo-suk (do fraco, porém bem-sucedido, Silmido). Uma figura outrora importante como Chung Sung-il, que era editor-chefe da falida revista Kino e fazia o papel de pivô entre a cena independente e as produtoras de filme comercial que estavam atrás de novos talentos, já não possui tanta força assim. Ele está enfraquecido no cenário cinematográfico coreano, mas um filme como Whispering Corridors (1998, dir. Park Ki-hyung), por exemplo, só veio à luz porque Chung descobriu o diretor num festival regional dedicado a curtas-metragens e investiu nele. Embora Kim Dong Ho, por seu turno, idealizador e diretor do Festival de Pusan, o principal da Coréia, tenha sempre em mente a preocupação de ceder espaço aos cineastas independentes e revelar novos talentos – não apenas coreanos, mas de toda a Ásia (O Círculo, de Jafar Panahi, é um exemplo de filme possibilitado pelo fundo de investimento que Kim criou através do Festival de Pusan) –, atualmente é mais comum os cineastas debutantes nas grandes companhias serem egressos das séries televisivas, e não mais das revelações festivalescas. Kim Dong Ho aponta dois aspectos como cruciais para a renovação e enriquecimento do cinema coreano. O primeiro foi a criação de cotas, restringindo a participação dos filmes americanos no circuito exibidor e obrigando os proprietários de salas a exibir filmes coreanos por pelo menos 146 dias ao ano (o que agora está caindo com as renegociações que o governo norte-americano tem empurrado através de chantagens econômicas). O segundo fator de estímulo foi o surgimento, a partir já dos anos 80, de uma nova geração de cineastas que se formavam nas escolas do país ou vinham de seus estudos terminados no exterior. A diversidade começou a virar palavra de ordem: novas formas de abordar os gêneros, novos subgêneros, novos estilos e códigos de ficção.

Atenhamo-nos a essas palavras: abordar os gêneros, produzir novas formas – de preferência com uma pitada confrontacional/desconstrutora – em cima deles. Mesmo para os cineastas que mergulham em viagens pessoais e desenvolvem estilos próprios, a grande questão que se impõe é como aplicar sua ousadia estética ou sua inventividade visual a serviço dos códigos de gênero. Organizado por diretores da crista da onda como Park Chan-wook e Bong Joon-ho (de Memories of Murder), o Mise-en-Scène Short Film Festival se foca no cinema de gênero, programando-se em cinco categorias diferentes: sócio-drama, melodrama, thriller de ação, terror e comédia. O festival, badalado pela mídia e freqüentado em peso pelo público jovem, existe há três anos é já é um exemplo perfeito do quadro atual do cinema coreano: revelar novos diretores já com pretensões de cinema de gênero inovador. Resultam diálogos de fato inusitados dessa tendência: Save the Green Planet (2003, dir. Jang Jun-hwan) é um screwball/sci-fi que mistura teoria de conspiração interplanetária com thriller corporativo em roupagem videoclípica, uma fábula feérica antiganância que volta e meia se perde em puras alucinações cromáticas (em tempo: a relação do cinema mainstream coreano com as cores merece um estudo à parte – eles filmam o espaço "real" da cidade como se fosse um parque de diversões reluzente!). O filão de comédias românticas também varia no repertório: ora tende para o melodrama (My Sassy Girl, de 2001, grande sucesso de Kwak Jae-young, e Daddy Long Legs, de 2005, troféu pieguice dirigido por Kong Jung-shik), ora rende um híbrido interessante como a action comedy de recasamento em My Wife Is Gangster (2001, dir. Jo Jin-gyu).

E a tirar pela prodigiosa fileira de filmes policiais, que não raro se assemelham aos clássicos que esse gênero revelou nos anos 70 em Hollywood, é mais que legítimo notar no cinema coreano a sobrevida de dois elementos hoje combatidos violentamente no front estético dos cinemas europeu, americano e mesmo asiático que circulam pelos festivais de peso: o psicologismo e a crença na ficção de grande enredo (aquele que fala da superestrutura até quando se concentra numa investigação particular, que finge tratar de um simples enigma regional a todo momento tangenciando a grande História e os rumos da nação) ainda funcionam – e muito bem, diga-se de passagem – em um filme como o excepcional Memories of Murder (2003). Bong Joon-ho construiu uma obra de suspense policial em que, mais até do que as conotações políticas (o filme começa com uma cartela que o localiza na reta final da dureza da repressão política, na segunda metade da década de 80), impressiona a forma concisa e poderosa com que a mise en scène é conduzida. A seqüência clímax ocorre à beira de um túnel numa linha de trem, com armas sendo apontadas e reações histéricas sendo despertadas pela inacessibilidade a uma solução do caso. Somos postos então diante de efeitos gráficos potencializados de um corte a outro da cena – um domínio visual que faz a iconicidade acavalada de Old Boy parecer totalmente exposta na estratégia de saturação que encobre sua fragilidade.

Os policiais da pequena cidade em que ocorrem crimes em série estão inscritos sob o signo da tortura e da violência gratuita, são verdadeiras figurações da obscuridade política da sua era. Eles são obrigados a lidar com a ausência de pistas ou com a própria incompetência para encontrá-las. Quando surge um único suspeito forte, logo o transformam em culpado a qualquer custo: é preciso achar um bode expiatório – os anos de tortura deixaram todos obnubilados. Enredo social e psicológico, sim, mas que não opera senão através de uma dramaturgia do corpo e de uma mise en scène do espaço. Se o culpado não havia sido achado, matar o rapaz suspeito, no final, não resolveria os problemas da sociedade traumatizada. No epílogo de Memories of Murder, um dos policiais, o mais velho, vai ao mesmo local do começo do filme, onde ele havia encontrado o corpo de uma jovem assassinada escondido no bueiro junto à estrada, e mete o pescoço para ver o que há no esgoto. Dessa vez ele nada encontra, mas o simples gesto de querer parar o carro e ver o bueiro novamente já mostra a grande inconclusão: nada ficou solucionado na história do filme (logo, do país). Os efeitos de alienação e dissolução da memória política pelo sentimentalismo e pela grandiosidade épica estão jogados para escanteio: em Memories of Murder a ferida histórica permanece realmente aberta.


Luiz Carlos Oliveira Jr.