CARMEN NA ÁFRICA
Mark Dornford-May, U-Carmen ekhayelitsha, África do Sul, 2004
 

No início dos anos 80, chegaram aos cinemas três versões diferentes para a paixão obsessiva do soldado Don José pela cigana Carmen, escrita por Prosper Merimé. Exceção feita a Prénom Carmen, de Jean-Luc Godard, os filmes de Carlos Saura e de Francesco Rosi tinham por trás a sombra opressiva da ópera de Bizet – que se encontra, junto aos afrescos da capela Sistina de Michelangelo, à Monalisa de Leonardo Da Vinci, às sinfonias de Beethoven, ao Dom Quixote de Cervantes e às tragédias de Shakespeare, no seleto panteão das mais famosas criações artísticas da espécie humana. Em Carmen na África, surpreendente Urso de Ouro do último Festival de Berlim, o diretor Mark Dornford-May e o grupo Dimpho Di Kopane levam a tragédia de Merimé/Bizet para a periferia miserável e negra da África do Sul, enfrentando o mesmo problema que em geral assola as adaptações cinematográficas de óperas: a incapacidade de transpor a inverossimilhança teatral das ações e dos sentimentos operísticos para o espaço pretensamente realista engendrado pela narrativa fílmica.

Carmen na África se inicia com travellings que descortinam o gueto miserável de Sevilha, em Capetown. Referência nada sutil à cidade onde se passa a ópera de Bizet e o romance de Merimé, o subúrbio negro indica a tentativa de Mark Dornford-May de conectar o naturalismo do ambiente representado no filme à fantasia romântica contida nas obras que lhe servem de base. O projeto de misturar as árias cantadas pelos personagens com a narrativa dramática convencional (que pretende dar ao espectador a ilusão de realidade), porém, naufraga uma vez que, se na ópera a música se apresenta como a força-motriz que de fato leva os acontecimentos à frente, no filme as seqüências explicitamente operísticas apenas diluem a paixão trágica entre Carmen e Dom José, ao se contraporem e, em conseqüência, soarem forçadas em relação às demais cenas que integram Carmen na África. Em outras palavras: enquanto o clássico de Bizet se torna crível pelo respeito que mantém aos cânones do meio para o qual foi destinado, a adaptação de Mark Dornford-May se faz inverossímil na medida em que sujeita os números musicais aos ditames da estrutura cinematográfica, transformando aqueles em meros apêndices desta.

Para o cineasta, também está em jogo o suposto caráter universal da história criada por Merimé e consagrada por Bizet, que poderia ser transposta para qualquer época e para qualquer lugar. O resultado, visto em Carmen na África, mostra a busca pela fidelidade total ao enredo, ao mesmo tempo em que se verifica a adequação da trama ao contexto específico sul-africano. No entanto, as soluções encontradas por Mark Dornford-May são, mais das vezes, esdrúxulas: a Carmen que trabalha para a tabacaria Gipsy, em referência à origem cigana que ela possui na ópera; o tenor que surge vestido de toureiro na televisão, pois interpreta no filme o papel que corresponde, na ópera, ao da terceira ponta do triângulo amoroso que propicia a tragédia; a praça de touros transformada em igreja evangélica; o Dom José que, em lugar de soldado do exército, faz-se membro da polícia. Embora permaneçam atuais as ingerências a respeito da corrupção policial, dos abusos de autoridade, da pobreza generalizada das classes mais baixas e do contrabando como modelo possível de vida e alimentador da violência dentro da sociedade, as tentativas de associar os comportamentos dos personagens a traumas psicológicos advindos do passado do país – marcado pela política do apartheid – somente reiteram o empobrecimento da potência emocional existente na relação entre o ciúme de Don José e o anseio por liberdade de Carmen.

Carmen na África fica no meio do caminho entre a ópera e o cinema. Ao respeitar excessivamente Bizet, Mark Dornford-May acaba por traí-lo, já que trata a paixão desmedida, que leva os personagens à tragédia, como mero elemento decorativo da narrativa burocrática que conduz.

Paulo Ricardo de Almeida