Estranha
e ousada escolha, começar uma carreira de diretor
de cinema com um filme de época. A equipe é
extensa, a necessidade de controle é muita, figurinos
demais, muitos figurantes, reconstituição
de locações, etc. Em Cafundó,
Paulo Betti cai vítima de sua ambição
que já assolou, em condições
semelhantes, o primeiro longa de André Sturm,
Sonhos Tropicais e realiza um filme sem
maiores preocupações além de simplesmente
narrar (mal) uma história política e socialmente
relevante. Claro, a trajetória de vida de João
de Camargo parece ser interessantíssima. Mas,
o cinema sendo uma arte, o valor deve ser buscado não
na relevância do tema mas no ofício da
obra, mais no "como" do que no "o quê".
E esse "como" revela insuficiências
flagrantes.
Filmes de atores que passam à realização,
geralmente, costumam ter uma urgência, uma entrega
à interpretação, que geralmente
compensam a falta de mestria no manejo da câmera
e a desigualdade no ritmo e na estrutura. Mas
nada aqui: depois de uma introdutória e algo
instigante cena de delírio no centro de São
Paulo, entramos, sem eira nem beira, sem tempo suficiente
para instalação naquele mundo, na história
de um negro que tem visões divinas e se transforma
numa espécie de padre ou guru religioso em Sorocaba.
Mas da história só temos nacos: ao longo
da projeção, sente-se a nítida
impressão de um filme que deveria ter por volta
de três horas, mas que foi picotado até
chegar à duração mais conercial
e palatável de 100 minutos. Se a direção
deixaria a desejar da mesma forma, a montagem impede
completamente o filme de ter ritmo próprio, acavalando
uma atrás da outra as situações
da vida do protagonista, sem que tenhamos noção
da passagem do tempo (excetuadas as toscas soluções
de maquiagem) e das viagens dos personagens pelo território
(em momentos parece que viajaram ao redor do Brasil,
em outros simplesmente cruzaram a fronteira de uma cidade).
É como se cada cena só servisse para denotar
uma informação específica, e, uma
vez dita (geralmente) ou mostrada essa informação,
a cena pudesse acabar abruptamente para a seguinte,
e assim por diante.
O que vemos na tela em Cafundó se assemelha
ao conteúdo dos saquinhos de sopa que vemos em
supermercados, com seus ingredientes desidratados: quando
abrimos, parecemos ver apenas simulacros de ervilhas,
de pedaços de cenoura, de frango. Um esboço.
Cabe à água fervente realizar o milagre
da recriação, dando corpo ao intragável
e fazendo aparecer uma refeição. Se pudermos
transplantar a situação para o cinema,
a direção e a montagem seriam os equivalentes
à água, enchendo de vida, dinamismo e
presença uma história que só existe
no papel (talvez seja até por isso que o roteirista
é também creditado como autor, mesmo que
só Paulo Betti seja o diretor). Em Cafundó,
só vemos os diálogos filmados, os lugares,
os figurantes sendo figurantes (parecem até brechtianos
tanta a falta de naturalidade), as ações.
Falta água. E água, como todos sabemos,
é a fonte da vida.
Ruy Gardnier
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