FLORES PARTIDAS
Jim Jarmusch, Broken flowers, EUA, 2005

O acesso aos filmes de Jim Jarmusch raramente se dá pelo enredo ou por personagens. É preciso, antes, aderir a signos. Em seu primeiro longa-metragem, Permanent Vacation, despontava um maneirismo menos de atletismo de câmera e mais de estases gráficas em que a estilização dizia respeito a gestos, poses e referências (ao cinema clássico, às séries de tv, à arte pop): o plano-seqüência fixo que mostrava um rapaz neo-bebop acordando no terraço de um prédio, com o Empire State Building ao fundo, tinha a tarefa de minimizar a um único enquadramento e um único intervalo entre cortes a dupla assimilação de Andy Warhol (Sleep e Empire). Estranhos no Paraíso, o filme posterior, trazia também personagens que perfaziam o ciclo ambíguo do novo mercado de imagens: consumir imagens até se tornar uma delas. Vinte anos e sete longas depois, vem Flores Partidas, o filme em que Jarmusch mais aprisiona seu universo em formas e personagens cimentados, paralisados justamente na sua tendência de movimento. Um falso road movie – se por road movie se entende um filme que traz ao cinema a sensação de movimento e passagem, Flores Partidas está mais para o estatuário de uma América que antes de chegar à tela já é imagem. Don Johnston (Bill Murray) faz o passeio por um museu de cera da sociedade americana: o que interessa a Jarmusch é um mapeamento dos EUA a partir de tipos que se encontra tanto viajando de carro quanto assistindo à televisão – mas que requerem um olhar diferenciado, atento a detalhes.

Os primeiros minutos de Flores Partidas mostram Bill Murray parado no centro da sua sala de estar, com a tv ou o som ligados, como se estivesse petrificado pelo tédio. Após ser deixado por Sherry (Julie Delpy), que reclama estar sendo tratada como a amante de um homem que nem casado é, ele recebe uma carta em que, com letras vermelhas digitadas à máquina num papel rosa, alguém lhe informa a existência de um filho que nunca chegou a conhecer. Seu vizinho Winston, imigrante africano que aprende na internet os macetes das histórias de detetives (cultura do folhetim policial que em Daunbailó Roberto Benigni dizia ter aprendido no cinema), começa a convencê-lo a ir atrás desse filho, ou de seja lá qual for a verdade sobre essa carta. Operário que precisa “bater o cartão” e sustentar seus filhos, portanto sem tempo para se aventurar, Winston se embriaga no infinito de conexões e atalhos da internet, enquanto Don, que enriqueceu com a informática, nem computador possui. Exatamente o tipo de paradoxo que Jarmusch ama: a cultura que fascina muito mais o estrangeiro do que o seu próprio inventor. Winston vive seus dias de ficcionista ao planejar (mapas, endereços, logística, dicas de comportamento, tudo por conta dele) e acompanhar à distância a viagem à procura das ex-namoradas de Don.

A odisséia de um pai ao encontro do filho já aparece como uma sobrecarga de simbolismo que desperta todo tipo de receio, mas Jarmusch sabe perfeitamente construir uma dramaticidade cenográfica, uma narrativa puramente espacial, e é exatamente isso o que pauta grande parte das cenas de Flores Partidas. A estrutura resultante se aproxima de uma sucessão de episódios/esquetes separados por hiatos narrativos ao som da música “de estrada” gravada por Winston. O trabalho de Bill Murray não se situa nem abaixo nem acima do esperado, algo como uma interpretação em “temperatura ambiente”: seu corpo em desacordo total com os lugares e as pessoas que visita (a distância é tamanha que chega a ser inverossímil um relacionamento passado entre ele e aquelas mulheres), a inação como premissa para uma dramaturgia dos pequenos gestos e reações faciais, a exposição ao patético, o constante clima de “saco cheio”. Às vezes falta ao personagem de Murray em Flores Partidas o que de certa forma já faltava em A Vida Marinha com Steve Zissou e dava a força de Encontros e Desencontros: um sentimento de diluição no espaço que ultrapasse a simples fetichização do ator. Mas nada que impeça que a genialidade de Bill Murray aflore.

É mesmo na falta do que fazer que Don aceita essa busca. A motivação é indiferente: a origem de um movimento, assim como seu ponto de chegada, nunca teve muito peso no cinema de Jarmusch, e Flores Partidas tenta uma nova versão da indolência narrativa de outros filmes dele. A paternidade é apenas uma ferramenta de frouxidão psicológica. A questão da família não se põe mais, e tudo que se aproxima desse assunto vem carregado de ligações defeituosas: a viúva carente (Sharon Stone, como sempre extraordinária) e sua filha Lolita, que aparece pelada na frente de Don; o casal que vive numa casa que parece um aquário kitsch, dividindo o mesmo negócio e sem possuir filhos; o pandemônio caipira em que todos são sensíveis a qualquer elemento externo, reagindo com histeria e violência (onde Bill Murray leva o soco que o faz passar o resto do filme com um esparadrapo no supercílio). Somente Winston, o estrangeiro, apresenta uma família solidamente constituída – os protótipos familiares americanos caem na caricatura fácil.

Também não há mais relevância na questão do verdadeiro e do falso: a carta não precisa ser autêntica, a jornada não precisa levar a algum lugar, pois o que se está pondo à prova nada mais é que a simples existência de Don Johnston (ser ou não ser, mas sem se questionar o como). A figura difusa é ele mesmo, não o filho supostamente concebido muitos anos antes. Tudo se resume a uma necessidade de semelhança – curiosamente a premissa lacaniana para a construção da identidade (o “estágio do espelho” etc e tal; teoria ainda recorrente quando Jarmusch começava a fazer cinema). A única pessoa com quem Don se comunica sem ruídos é um estrangeiro, faltam-lhe semelhantes. Basta que Don aviste um rapaz com um casaco parecido com o seu para começar a ligar os fatos e tentar achar nele seu possível filho. Logo depois, um outro rapaz passa de carro e não apenas seu casaco, mas também o rosto é muito parecido. A cura da falência existencial de Don não estava na ilusão de descendência, portanto, e sim na procura de um sentimento de familiaridade com o mundo à sua volta. O filme não deixa de ser um atestado de impasse diante das novas imagens – que podem ou não acarretar narrativas em crise. O último plano é um giro de 360º da câmera em torno de Bill Murray, terminando parado no seu rosto imutável: o limite da velocidade de conexão é o próprio vazio. 

Jarmusch recoloca aqui os elementos de sempre – não por acaso os elementos que o aproximam de Wenders e o tornam um estrangeiro dentro de casa –, com o detalhe de que entre o esteta talentoso (Estranhos no Paraíso, Daunbailó, Dead Man, Ghost Dog) e o narrador derrisório (Trem Mistério, Noite Sobre a Terra, Flores Partidas) se acha a fronteira que define o triunfo ou o fracasso de seu cinema. Mas o tal elo pai-filho, ainda que fantasmático, praticamente impõe um desenvolvimento afetivo do material filmado. É onde entra a ligeira mudança: por trás de toda ironia e de toda amarração conceitual, Flores Partidas esconde uma propulsão que Jarmusch quase nunca deixava aflorar (embora em Ghost Dog já se pronunciasse), e que consiste numa vontade de fazer o filme chegar ao espectador por caminhos menos intelectuais do que emotivos. A aproximação ao filme é concentrada num universo cultural não tão fechado. O que equivale a dizer que Jarmusch fez seu filme menos indie e mais “universal”.

Mudança que não salva Flores Partidas de ser excessivamente cauteloso na administração dos temas e das proposições formais. O melhor do filme está mesmo em alguns momentos de comédia inteligente com Bill Murray inspirado. Ghost Dog e Dead Man – este ainda sendo o grande filme de Jarmusch depois de Permanent Vacation e Estranhos no Paraíso – aprofundavam as preocupações temáticas, mas experimentavam novas formas, enquanto Flores Partidas completa ao lado de Sobre Café e Cigarros uma revisão de obra um tanto emparedada em si mesma. Ou talvez essa seja a forma coerente à visão de um mundo que, fazendo jus ao momento “filosófico” de Don, desconhece o passado, está anestesiado ao futuro e vive a inflação do presente.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 




Bill Murray e a presença incômoda (?!) de Sharon Stone