NOIVA E PRECONCEITO
Gurinder Chadha, Bride and prejudice, Inglaterra, 2005

Talvez uma das características mais fascinantes da cultura indiana seja a não-negação do que lhe é externo e diferente, e conseqüentemente a incorporação e re-significação de elementos que freqüentemente operam no processo. O diferente não é uma ameaça, mas uma fonte de apropriações. Assim sendo, sua relação com as culturas estrangeiras, especialmente a americana e a inglesa, pautada por um certo fascínio do “desenvolvimento”, traz diversos complicadores para as teorias de imperialismo cultural. Ao mesmo tempo em que o indiano absorve dados destas culturas com facilidade, ele impõe a sua forma de levar isto adiante. E por mais que se submeta a uma “aprovação”, com uma forte necessidade de se sentir reconhecido, ele se afirma, com uma espécie de “orgulho pátrio”. Um orgulho afirmativo, que não vem de um conjunto de características que necessitam serem preservadas como um monolito, e sim de um sentimento – que o indiano pode carregar consigo aonde quer que ele vá, no que quer que ele faça. A sentimentalidade, aliás, é um dado importante da relação do indiano com o mundo e, não por acaso, é ela que orienta a vertente popular de seu cinema.

É neste terreno que Noiva e Preconceito transita. Dirigido por uma anglo-indiana, o filme se pauta na estética característica de Bollywood para narrar um romance envolto em conflitos desta natureza “cultural” (a noiva e o preconceito). Em sua narrativa calcada na obviedade, este romance entre Lalita, indiana, e Darcy, americano, é apontado desde a primeira seqüência. No entanto, o filme, que se divide também entre as dinâmicas amorosas das irmãs da protagonista, não nos dá de cara a certeza de que este casal irá de fato se consumar como tal. No meio do caminho, diversos qüiproquós e confusões de conceitos e papéis se dão, deixando entrever questões acerca de como um povo se quer representado, e forja sua própria identidade cultural. Apropriando de fora (da Inglaterra) uma fórmula cinematográfica bastante característica e tematizando choques culturais, Chadha dispõe seus personagens de acordo com tipificações facilmente reconhecíveis, para ir aos poucos embaralhando algumas atitudes esperadas.

Lalita é a garota indiana esclarecida. Darcy, o americano conquistador. Balraj, o inglês gentil. Lakhi, irmã mais nova, a adolescente ocidentalizada e inocente. Maya, a irmã que sonha com o casamento. A mãe é uma típica Punjabi falante e expansiva, que quer casar as filhas a todo custo, de preferência com bons partidos. O pai é aquele tipo calmo, na dele, que quer o melhor pras filhas. Kholi é o típico loser nerd que faz o que pode para parecer bem-sucedido, convertendo-se em personagem cômico. Kiran, irmã de Balraj, é a mulher européia emancipada e arrogante. Johnny Wickham, o mochileiro sedutor e mal-intencionado. Reconhecemos nestes personagens figuras recorrentes, mas, para além de suas imagens, o filme trabalha em cima dos posicionamentos e comportamentos de cada um deles, a partir de seu pressuposto de “encontro entre culturas”.

Vindos da América, Kholi e Darcy tem imagens redutoras da Índia. Kholi ama o seu país como um lugar distante, quase idílico, para passar férias, ideal para entretenimento e descanso. Seu subdesenvolvimento, porém, nunca fará dele um espaço para viver. Já Darcy vê a Índia com exotismo, do alto da sua arrogância capitalista: um lugar pobre, de tradições arcaicas, mas que talvez possa ser fonte de lucro. Lalita, originária dali (e heroína do filme, condutora do nosso olhar), é aquela que irá apresentar uma imagem nuançada do país, na qual a suposta cultura “pura”, exótica, que os olhos ocidentais vão buscar com curiosidade, mescla-se a uma absorção enorme (por vezes mais do que o desejado) da cultura ocidental. Nós não chegamos a ver a Índia que esperamos, pois praticamente todos os personagens se furtam de uma caracterização corrente (o pai, que não está nem ligando pra casamento, Lakhi, que é totalmente americanizada, Wickham, o príncipe mau-caráter, e até Darcy, que não conseguimos enquadrar facilmente) e os que encarnam esta caracterização, o fazem em tom de pastiche (a mãe, louca por um casamento tradicional, Maya, que sonha em encontrar seu homem, Kholi, indiano que não conhece o seu país).

As tomadas de posição de Lalita – o flerte com Wickham (que apresenta um interesse “genuíno” e “humilde” pela cultura local) e a entrega sem culpa à sua doçura (ainda que seja depois revelada sua “outra face”), o repúdio ao interesse machista-imperialista que Darcy num primeiro momento apresenta (“me mostre as tradições”), assim como o desprezo pela sua arrogância – apontam para a sua vontade de se instaurar em outro tipo de dinâmica inter-cultural. A defesa de uma liberdade (da mulher, do país periférico) é, para ela, o ponto de partida de qualquer relação mais ampla. E isto, no filme, está relacionado com sua própria constituição: filme realizado na Inglaterra que “empresta” sua formatação narrativa de Bollywood, cinema que de certa forma apregoa este tipo de mescla como afirmação.

Noiva e Preconceito, no entanto, não é mais o Bollywood “clássico”. Faz parte, indiretamente, de um movimento mais recente deste cinema, o da “ocidentalização”. Mas o que seria formatar este produto para o mercado estrangeiro se, para se constituir, este cinema modelou-se a partir deste estrangeiro? Ir ainda mais fundo nesta incorporação, que reside de certa forma no seio desta indústria (capaz de misturar gêneros, formas dramáticas, influências narrativas)? “Incorporar” até um limite no qual não haveria mais forma nem discursos identificáveis, pois estes teriam se diluído? Ao fazer um filme “indiano” fora da Índia seguindo estas tendências, misturando registros (o pastiche, a sátira, a comédia, o drama, o romance) e tematizando questões de choque cultural, Chadha demonstra uma autêntica compreensão dos processos fascinantes que alimentam o cinema de Bollywood (e que, por uma retro-alimentação, podem mesmo vir a diluí-lo por completo como forma identificável e até “vendável”) e propõe questionamentos sobre representação de imaginários (nacionais, cinematográficos) como poucas vezes se vê. Sem com isso escapar da própria encarnação de diversas destas problemáticas, já que o filme está imerso nesta esquizofrenia e não se pretende um discurso organizador deste todo, embora trabalhe com todas estas questões.

Em quesitos formais, porém, é uma pena que Chadha não consiga dosar apropriadamente o ritmo do filme (especialmente nas cenas musicais, que carecem muito de dinamismo), e apareça com uma solução um tanto fácil no final, resolvendo o futuro dos personagens de forma excessivamente “acertada” e rápida, para o encaminhamento do filme até ali.

Tatiana Monassa