BATALHA NO CÉU
Carlos Reygadas, Batalla en el cielo, México/França/Bélgica, 2005

Marcos é uma figura rechonchuda, dono de poucas expressões faciais e olhar amortecido. A cidade grande a seu redor passa por ele como quem o atropela. Marcos é o personagem-corpo deste segundo longa-metragem de Carlos Reygadas, diretor do aplaudido Japón. Durante duas horas de projeção, seguimos Marcos e sua peregrinação movida pela culpa e na busca de uma redenção, em uma Cidade do México caótica.

Pinceladas de alegorias e metáforas do mal-estar social mexicano são amarradas a um novelo de planos-sequência e câmeras na mão divagantes que nunca se definem entre o olhar para a parte sensível e os sintomas de um todo dormente. Batalha no Céu aparece como mais um representante do fetiche do plano e da dor latente – levadas com mãos pesadas por um diretor que antes de cultivar personagens, cultiva reféns. Em um horizonte de generalidades estéticas, surtos de radicalismo e vigor podem aparecer como bananas aos olhos mais esfomeados. Reygadas sabe disso. Leu as cartilhas – todas. E se lançou a um cinema onde os virtuosismos intraplanos podem até mesmo saber emular maravilhas, mas não vão além de carregar seu filme até a falência trêmula dos verborrágicos.

Em momento algum, Batalha no Céu sabe se definir entre um desenho dramatúrgico de uma tragédia clássica ou a imagem sintoma das alegorias existenciais. Tomar o drama pessoal de Marcos como porta de entrada para elucubrações sócio-paisagísticas é de uma crueldade ímpar, e Reygadas leva isso adiante às últimas consequências. As relações das personagens, assim, não conseguem ganhar nem a verdade parcial de seus afetos nem a verdade possível de um discurso macroscópico. Reygadas planta seus personagens como quem desenha muletas psicológicas para um desfile de planos em uma semana de moda, se apoiando sobre a figura pouca expressiva do não-ator Marcos como forma de dar sustentabilidade a um discurso unilateral do desespero. A câmera de Reygadas discorre e explora – não sente. Não se abisma nem suspende. Quer poder ter discurso antes de ter afeto. Antes de se afetar. Submete seus personagens, mas não os encontra. Os atropela mais. E mais cruelmente do que todo o universo de dores contidas que ele parece querer descobrir, desvelar, tocar.

Ser um maestro de climas macroscópicos e encontrar os gestos de seus personagens a um só tempo não é tarefa das mais fáceis – Reygadas foi só mais um a se perder no labirinto que de alguma forma se gerou dentro de um certo cinema “de arte” contemporâneo e seu ideal da desdramatização da vida como fórmula de resistência ao melodrama mais banal.

Com essa vontade culpada de narrar e o maneirismo da apatia nas mãos, Reygadas não faz mais do que um filme genérico, ecoado de influências nobres, mas sem a delicadeza indispensável de carregar consigo uma intuição verdadeira mais do que uma certeza. Seu Marcos imóvel mijando nas calças não é mais que um truque do choque-fácil, pontuado no momento certo de uma narrativa sem rumo, mas que sonhava ter um (e porque querer ter um?). A moleca de classe média trepando com o motorista é da natureza das metáforas-abrigo mofadas das fissuras sociais e dos dias sem idéias de um cineasta tentando significar mais do que consegue sentir.

Cinema de tabuada. Cinema de arte para o circo, Batalha no Céu é uma coleção de possibilidades de beleza minadas por sua acumulação de efeitos especiais.  Fogos de artifício e piruetas que se tornam monótonas, ainda que filmadas com senso de ritmo e uma calorosa tensão nas imagens. Pois se existem no filme momentos de algum brilho, de vontade de cinema e de invenção ácida, não sobrevivem os mesmos a seus próprios excessos de articulação. A seu fluxo pomposo. Uma pompa que esfria a imagem e a transforma em trampolim para o exercício de discurso de um filme afogado em querer ser grande. E não há nada mais monótono do que um filme sustentado por propósitos. Um cinema proposital que tenta chocar a cada plano, que tenta dominar cada fotograma como uma medalha de honra ao mérito no peito. Reygadas aparece aqui esgotado já em seu segundo longa, afirmando os tiques de arte-de-decalque que Japón já trazia, mas bem diluídos. 

Porque o olhar não se doma por rédeas programadas, mas sim se impregna por distração, por brechas, por faíscas. E Reygadas não nos deixa distrair, divagar. Nem a nós, nem a seus corpos-personagens. Sonha o diretor em controlar a “sua” imagem como a um dedo em riste. E perde a batalha por olhar demais as próprias mãos.

Felipe Bragança