Pode ser um exercício fascinante olhar
para estes dois filmes, sem qualquer relação
aparente para além de terem sido exibidos na
Competição do Festival de Cannes deste
ano, e notar como eles curiosamente deixam perceber
que o Iraque é hoje um espaço que vai
ganhando cada vez mais força como um lugar imaginário
onipresente do que como o país real que é.
Falar hoje em "Iraque" é evocar uma
série de sentimentos muito maiores do que a geografia
física pode exprimir – um efeito em escala mundial
do que podemos dizer, por exemplo, da favela no Rio
de Janeiro, ou do sertão no cinema brasileiro.
No filme japonês Bashing, por exemplo,
não há um só plano que se passe
no Iraque – ele é apenas o local que assombra
toda a trama. A personagem principal do filme é
uma jovem que foi para o Iraque como voluntária
de ajuda humanitária, lá foi seqüestrada,
e, uma vez libertada, ao voltar para o Japão
é completamente marginalizada pela sociedade
– como se, de fato, houvesse contraído uma gravíssima
doença contagiosa. Isso tudo, aliás, é
o ponto de partida do filme, do qual nada vemos na tela
(apenas um crédito inicial que introduz a idéia
de que os seqüestrados no Iraque são rejeitados
na volta ao Japão - mais uma informação
do que uma explicação).
Quando o filme começa, logo ela é demitida,
assim como o seu pai, por conta de pressões populares
sobre as firmas que os empregam. A partir daí,
a bem da verdade, para qualquer pessoa pouco familiarizada
com as tradições e características
muito peculiares da sociedade japonesa, a trama toda
soa quase tão alienígena como se o filme
viesse de Marte. A maior parte do filme o espectador
ocidental passa tentando compreender (quiçá
aceitar) a idéia desta rejeição
"nacional" a alguém que vai a outro país
tentar ajudar as pessoas (e, não, não
se trata de uma posição política
anti-Bush, isso fica bem claro).
Kobayashi filma tudo com uma simplicidade radical (o
que chega a significar eventuais ruídos de câmera
- algo um tanto raro no cinema de longa-metragem de
hoje), e com uma câmera sempre na mão que
se esforça, ao máximo, por criar ela mesmo
movimentos e reposicionamentos dentro das seqüências
(é raríssimo ver um plano-contraplano
no filme). No entanto, o filme não segura todas
as pontas da narrativa, e acaba se tornando eventualmente
um tanto monocórdio. Em algumas poucas cenas
conseguimos ver algo a mais do que um realismo-naturalista
que tente dar conta do sofrimento desta família
rejeitada - como, em especial, o melhor plano do filme
no qual a mulher engole, com sofreguidão, toda
uma refeição. A angústia da personagem
naquele ato fala mais do que em todas as palavras do
filme.
Voltando à questão imaginário sobre
o Iraque, talvez o mais surpreendente movimento do filme
(e não são poucas as surpresas aos nossos
olhos, na escalada que toma a trajetória da família)
seja aquele no qual, ao longo do filme, o Iraque vai
passar de fantasma para "paraíso", para a personagem.
Quando ela finalmente declara que só lá
foi realmente feliz, sabemos que aí está
uma possível leitura do país que não
vemos com facilidade em nenhum outro lugar. Mas o fato
é que Humilhação tem mais
força por toda esta sua estranheza no espectador
do Ocidente do que por alguma qualidade intrinsicamente
cinematográfica que possua.
A estranheza do espectador do Ocidente também
é explorada por Hiner Saleem, diretor de Kilômetro
Zero, mas em chave completamente distinta. Como
já comprovava seu filme anterior, exibido na
Mostra dois anos atrás (Vodka Lemon),
Saleem é uma espécie de Emir Kusturica
do Oriente Médio, que conta com uma série
de absurdos especialmente excêntricos para traçar
um painel da região que cative o espectador pela
sua mistura de humor inesperado e exotismo pré-concebido.
No caso deste Kilômetro Zero, ele realiza
ainda um curioso "filme de exilado", do qual quase tudo
que precisamos saber para entendermos é que,
curdo, o cineasta fugiu do Iraque aos 17 anos para escapar
do regime de Saddam Hussein. Assim, o que temos na tela
como imagem do Iraque é algo quase tão
estranho quanto o "paraíso desejado"
do final de Humilhação, mas pelo
simples anacronismo aparente do filme, que exorciza
um demônio hoje um tanto "ultrapassado" na mídia
- o do governo de Saddam Hussein.
Ao se localizar no fim dos anos 80 na maior parte de
sua duração, o filme faz um movimento
que causa um certo interesse, mas, o fato é que
bater em Saddam Hussein hoje, se pode ser terapia importante
para um curdo exilado, para o resto do mundo parece
tão "original" quanto um filme com vilões
nazistas. O agora patético ex-ditador, preso
num buraco no jardim, goza do tipo de unanimidade vilanesca
que poucas figuras históricas possuem. E, assim,
"descobrimos" no filme que o regime de Saddam era um
inferno para os curdos - algo que, afinal, já
sabíamos.
Se a tese que vai querer comprovar causa pouco interesse,
restaria-nos ver como Saleem o faria pelo cinema. Mas,
o fato é que ele não é especialmente
talentoso nem para o humor (não basta uma estátua
de Saddam aparecer uma vez "assombrando o personagem",
ela precisa voltar três ou quatro vezes), nem
na sutileza narrativa (os citados prólogo e epílogo
passados na França, por exemplo, didáticos
e dispensáveis, comprovam o fato para além
de qualquer dúvida). Quando seu filme toma ares
bem parecidos, em termos de narrativa, com a comédia
de humor negro do cubano Tomás Gutierrez Alea,
Guantanamera, percebemos quão longe da
graça do latino Saleem está - sem dizer
que Alea faz sua sátira em pleno governo Fidel,
enquanto Saleem cria seu filme com Saddam preso
pelos EUA – o que torna seu filme, para além
de uma incapacidade artística, politicamente
complicado, para dizer o mínimo, pelo que pode
facilmente ser visto como uma defesa da intervenção
americana no Iraque. Não parece que seja intenção
de Saleem colocar a mão neste vespeiro, mas ela
vai parar lá inevitavelmente.
No mínimo, portanto, vale a curiosidade de ver
dois filmes que, apesar de inegáveis limitações,
traçam painéis um tanto inesperados da
imagética iraquiana, hoje quase totalmente composta
de atentados e protestos anti-Bush. Não chega
a ser muito, como cinema, mas certamente foi o que fez,
por exemplo, que Cannes resolvesse abrir as portas da
sua competição para os dois.
Eduardo Valente
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