PARALELAS E TRANSVERSAIS
Humilhação, de Masahiro Kobayashi
Kilômetro Zero , de Hiner Saleem


Bashing, Japão, 2005
Kilomètre Zéro, França/Curdistão, 2005


Pode ser um exercício fascinante olhar para estes dois filmes, sem qualquer relação aparente para além de terem sido exibidos na Competição do Festival de Cannes deste ano, e notar como eles curiosamente deixam perceber que o Iraque é hoje um espaço que vai ganhando cada vez mais força como um lugar imaginário onipresente do que como o país real que é. Falar hoje em "Iraque" é evocar uma série de sentimentos muito maiores do que a geografia física pode exprimir – um efeito em escala mundial do que podemos dizer, por exemplo, da favela no Rio de Janeiro, ou do sertão no cinema brasileiro.

No filme japonês Bashing, por exemplo, não há um só plano que se passe no Iraque – ele é apenas o local que assombra toda a trama. A personagem principal do filme é uma jovem que foi para o Iraque como voluntária de ajuda humanitária, lá foi seqüestrada, e, uma vez libertada, ao voltar para o Japão é completamente marginalizada pela sociedade – como se, de fato, houvesse contraído uma gravíssima doença contagiosa. Isso tudo, aliás, é o ponto de partida do filme, do qual nada vemos na tela (apenas um crédito inicial que introduz a idéia de que os seqüestrados no Iraque são rejeitados na volta ao Japão - mais uma informação do que uma explicação).

Quando o filme começa, logo ela é demitida, assim como o seu pai, por conta de pressões populares sobre as firmas que os empregam. A partir daí, a bem da verdade, para qualquer pessoa pouco familiarizada com as tradições e características muito peculiares da sociedade japonesa, a trama toda soa quase tão alienígena como se o filme viesse de Marte. A maior parte do filme o espectador ocidental passa tentando compreender (quiçá aceitar) a idéia desta rejeição "nacional" a alguém que vai a outro país tentar ajudar as pessoas (e, não, não se trata de uma posição política anti-Bush, isso fica bem claro).

Kobayashi filma tudo com uma simplicidade radical (o que chega a significar eventuais ruídos de câmera - algo um tanto raro no cinema de longa-metragem de hoje), e com uma câmera sempre na mão que se esforça, ao máximo, por criar ela mesmo movimentos e reposicionamentos dentro das seqüências (é raríssimo ver um plano-contraplano no filme). No entanto, o filme não segura todas as pontas da narrativa, e acaba se tornando eventualmente um tanto monocórdio. Em algumas poucas cenas conseguimos ver algo a mais do que um realismo-naturalista que tente dar conta do sofrimento desta família rejeitada - como, em especial, o melhor plano do filme no qual a mulher engole, com sofreguidão, toda uma refeição. A angústia da personagem naquele ato fala mais do que em todas as palavras do filme.

Voltando à questão imaginário sobre o Iraque, talvez o mais surpreendente movimento do filme (e não são poucas as surpresas aos nossos olhos, na escalada que toma a trajetória da família) seja aquele no qual, ao longo do filme, o Iraque vai passar de fantasma para "paraíso", para a personagem. Quando ela finalmente declara que só lá foi realmente feliz, sabemos que aí está uma possível leitura do país que não vemos com facilidade em nenhum outro lugar. Mas o fato é que Humilhação tem mais força por toda esta sua estranheza no espectador do Ocidente do que por alguma qualidade intrinsicamente cinematográfica que possua.

A estranheza do espectador do Ocidente também é explorada por Hiner Saleem, diretor de Kilômetro Zero, mas em chave completamente distinta. Como já comprovava seu filme anterior, exibido na Mostra dois anos atrás (Vodka Lemon), Saleem é uma espécie de Emir Kusturica do Oriente Médio, que conta com uma série de absurdos especialmente excêntricos para traçar um painel da região que cative o espectador pela sua mistura de humor inesperado e exotismo pré-concebido.

No caso deste Kilômetro Zero, ele realiza ainda um curioso "filme de exilado", do qual quase tudo que precisamos saber para entendermos é que, curdo, o cineasta fugiu do Iraque aos 17 anos para escapar do regime de Saddam Hussein. Assim, o que temos na tela como imagem do Iraque é algo quase tão estranho quanto o "paraíso desejado" do final de Humilhação, mas pelo simples anacronismo aparente do filme, que exorciza um demônio hoje um tanto "ultrapassado" na mídia - o do governo de Saddam Hussein.

Ao se localizar no fim dos anos 80 na maior parte de sua duração, o filme faz um movimento que causa um certo interesse, mas, o fato é que bater em Saddam Hussein hoje, se pode ser terapia importante para um curdo exilado, para o resto do mundo parece tão "original" quanto um filme com vilões nazistas. O agora patético ex-ditador, preso num buraco no jardim, goza do tipo de unanimidade vilanesca que poucas figuras históricas possuem. E, assim, "descobrimos" no filme que o regime de Saddam era um inferno para os curdos - algo que, afinal, já sabíamos.

Se a tese que vai querer comprovar causa pouco interesse, restaria-nos ver como Saleem o faria pelo cinema. Mas, o fato é que ele não é especialmente talentoso nem para o humor (não basta uma estátua de Saddam aparecer uma vez "assombrando o personagem", ela precisa voltar três ou quatro vezes), nem na sutileza narrativa (os citados prólogo e epílogo passados na França, por exemplo, didáticos e dispensáveis, comprovam o fato para além de qualquer dúvida). Quando seu filme toma ares bem parecidos, em termos de narrativa, com a comédia de humor negro do cubano Tomás Gutierrez Alea, Guantanamera, percebemos quão longe da graça do latino Saleem está - sem dizer que Alea faz sua sátira em pleno governo Fidel, enquanto Saleem cria seu filme com Saddam preso pelos EUA – o que torna seu filme, para além de uma incapacidade artística, politicamente complicado, para dizer o mínimo, pelo que pode facilmente ser visto como uma defesa da intervenção americana no Iraque. Não parece que seja intenção de Saleem colocar a mão neste vespeiro, mas ela vai parar lá inevitavelmente.

No mínimo, portanto, vale a curiosidade de ver dois filmes que, apesar de inegáveis limitações, traçam painéis um tanto inesperados da imagética iraquiana, hoje quase totalmente composta de atentados e protestos anti-Bush. Não chega a ser muito, como cinema, mas certamente foi o que fez, por exemplo, que Cannes resolvesse abrir as portas da sua competição para os dois.


Eduardo Valente