HUCKABEES – A VIDA É UMA COMÉDIA
David O. Russell, I Heart Huckabees, EUA, 2004

Tudo vai bem

A prova de otimismo sui generis de David O. Russell não chegou aos cinemas do Brasil. Mas o lapso do circuito exibidor não é dos mais graves: no máximo deixou de lado um filme que, nos seus devaneios idiossincráticos, endossa a visão de um homem sentimentalmente imaturo e existencialmente em crise que tantos outros filmes recentes já abordaram – a começar pelas obras originadas dos roteiros de Charlie Kaufman, de Quero Ser John Malkovich a Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças. E Huckabees – A Vida é uma Comédia de fato traz ecos fortes desse mundo virado de cabeça para baixo pelas narrativas recheadas de labirintos cenográficos e sub-tramas mil, presentes não apenas no broken heart club de Kaufman e cia, mas também no P. T. Anderson de Embriagado de Amor e em Wes Anderson quando faz um filme como A Vida Marinha com Steve Zissou. Russell não esconde de onde vêm as principais influências ao realizar sua screwball comedy neurastênica: Huckabees é em grande medida o projeto de alguém que, entre uma tomada e outra de Três Reis (interessantíssima encenação do absurdo pós-Guerra do Golfo, com fortes conotações surreais), assistia a um pedaço de Rushmore para relaxar e pensar já no passo seguinte. Enquanto procurava um estúdio interessado no projeto, houve até quem lhe dissesse que a Paramount andava procurando algo que fosse na linha de Os Excêntricos Tenenbaums, portanto ele teria chance por lá (mas o estúdio que acabou embarcando na viagem de Russell foi mesmo a Fox).

Assim sendo, o personagem de Jason Schwartzman em Huckabees é tranqüilamente uma continuação do protagonista que interpretou em Rushmore (também conhecido como Três É Demais). Para um produto sub-Anderson, Huckabees até adquire um valor na sobrecarga, pois começamos a perceber que se trata de uma proposta mais arriscada e inconseqüente do que as opções estéticas que o próprio A Vida Marinha com Steve Zissou apresenta. A tendência disjuntiva, que em Três Reis era apenas um tempero discreto, aqui se torna a mola mestra da narrativa. Russell não oferece a seu espectador um ponto de estabilidade ao longo do filme: tudo resplandece de forma confusa e saturada. A trilha sonora de Jon Brion (de quem Russell admirava o trabalho em Embriagado de Amor) auxilia na tradução da estranheza em um tipo quase inexplicável de alegria. Sob o caos, a meditação, a auto-análise, a angústia, enfim, sob tudo que atormenta o universo habitado pelos personagens do filme, a música tem o poder de mostrar que corre uma alegria e uma leveza que são, no fundo, o que realmente deve ser levado em consideração. Huckabees é um filme que quer ser otimista-apesar-do-mundo. De certa forma, Russell faz aqui a purgação de uma geração crescida sob a égide da psicanálise e do desespero existencial que levou à proliferação dos livros de auto-ajuda, das teorias sobre tudo, das terapias alternativas, da "cultura" new age. E como sugeriu Gavin Smith, editor da Film Comment (em que o filme foi capa), Huckabees pode também ser uma resposta zen ao niilismo irônico de Clube da Luta.

Faz mesmo sentido enxergar Albert Markovski (Jason Schwartzman) como uma versão adocicada do personagem de Edward Norton no filme de David Fincher. Jovem poeta frustrado, Albert é também ativista de uma coalizão engajada na preservação do meio-ambiente, sendo contra a progressiva urbanização do subúrbio em que o filme se passa. Fazendo jus ao nome da coalizão, Open Space, o filme mostra uma cidade que praticamente só cresce na horizontal, dando uma impressão de espaço amplo e indeterminado (e não há plano aéreo dessa cidade). As únicas estruturas verticais que aparecem no filme são o edifício em que se acha a corporação que está no título, Huckabees, e o prédio em que vivem os pais de Albert. Em uma e outra locação, as versões humanas dos seus tormentos, a começar por Brad Stand (Jude Law), oposto extremo de Albert, executivo bem sucedido que namora Dawn (Naomi Watts), a garota-propaganda da empresa. Albert odeia Brad – que lhe passa a perna para promover a marca de sua empresa junto ao merchandising social – com todas as suas forças, o que o casal de "detetives existenciais" representado por Bernard (Dustin Hoffman) e Vivian (Lily Tomlin) tenta provar que é apenas uma reação ilógica a um "outro" que não é senão sua continuação indistinta. A terapia proposta por Bernard, enquanto sua esposa Vivian investiga cada detalhe da vida de seus clientes, é se enfiar em uma manta, fechar-se para o mundo e perceber que tudo pertence a um mesmo caos originário. A paz através do caos. Coisa de doido? "Tudo está conectado, tudo faz sentido", Bernard não cansa de dizer, ao que Caterine Vaubert (Isabelle Huppert), autora de um best seller desencantado e negativista, responde dizendo que a verdade universal consiste em "crueldade, manipulação e insignificância".

No fim, entretanto, todos contribuem positivamente para uma mesma narrativa de redenção: Russell dilui a fronteira entre antagonismo e protagonismo. E para isso conta com um elenco realmente excelente: ninguém melhor que Jude Law (que mais e mais vem se provando um grande ator) para o eurotrash arrogante, em seu cotidiano de plástico ao lado da "Miss Huckabees", que é a brilhante Naomi Watts; Dustin Hoffman parece se divertir a cada plano neste filme que sacode o universo temático de A Primeira Noite de um Homem; Isabelle Huppert fala em inglês mas joga em casa, pois a stalker filósofa-do-pessimismo que ela interpreta jamais poderia estar a cargo de outra atriz; Mark Wahlberg, que já tinha sido um dos protagonistas em Três Reis, está ótimo como o bombeiro irascível que enxerga no petróleo a fonte de todos os problemas da contemporaneidade.

Russell fez uma comédia ensaística sobre um tempo (presente) em que os filósofos mais otimistas são os primeiros a cair em depressão, e o fez sem uma narração explicativa (suas brincadeiras com a voz off vão totalmente no sentido de aumentar a confusão). Mas é aquilo: basta voltar no tempo e achar um filmaço como Meu Tio da América, de Alain Resnais, para reconhecer uma obra que trabalha questões parecidas – também em modo de ensaio-comédia-documento bruto do presente – e é bem melhor resolvida na sua estrutura e na sua estética. Que não se cometa uma injustiça, contudo: como resposta (nem afirmativa nem negativa, apenas uma resposta) a um cinema que é feito hoje nos EUA e que, volta e meia, acaba sendo muito querido pela crítica de lá, Huckabees se mostra um dos trabalhos mais interessantes dos últimos anos no panorama indie do cinema americano. Já como caricatura do ambiente corporativo e reflexão sobre o estatuto da imagem pós-publicitária, o filme deixa a desejar. Por ora, perceber que Russell consegue dar leveza a um filme que tinha tudo para pesar toneladas de teorias insípidas (= Waking Life) é o suficiente para aguardar seu próximo filme com algum... otimismo.


Luiz Carlos Oliveira Jr.