ÁGUA NEGRA
Walter Salles, Dark water, EUA, 2005

A partir do lançamento de An Alan Smithee Film: Burn Hollywood Burn, o Director’s Guild of America – sindicato dos diretores norte-americanos – decidiu que o pseudônimo utilizado por cineastas que retiravam seus nomes dos créditos deixara de ser efetivo. Já sem contar com o procedimento que preserva o “autor” nos casos em que há discordância sobre o produto final, azar de Walter Salles que, contratado para refilmar Honogurai mizu no soko kara, teve que assinar Água Negra, mesmo sem ter direito ao corte final do filme. A estréia de Salles como diretor de aluguel nos EUA permite, porém, uma visão mais clara de falhas já marcantes em seus filmes precedentes. Antes camufladas pelo material de origem nobre, pelas boas intenções e pelo “humanismo”, se evidenciam aqui a ojeriza pelo cinema de gênero (e a tentativa intelectualizante de melhorá-lo), a incapacidade de colocar o espaço em jogo para dar vida à narrativa e a pobreza visual (que se reflete na fotografia-clichê de Affonso Beato e nos enquadramentos desprovidos de sentido), que terminam por, perdoando o trocadilho, afogar Água Negra.

Enquanto disputa com ex-marido a guarda da filha de seis anos, após divórcio recente, Dahlia se muda com a garota para a ilha de Jersey, parte mais pobre de Nova York e imediatamente ao lado de Manhattan. Em virtude das dificuldades financeiras pelas quais atravessa, aluga apartamento caindo aos pedaços em conjunto habitacional que (para os padrões americanos) beira ao cortiço, onde misteriosa goteira de água negra, no teto do quarto, relaciona-se com o sumiço de criança, abandonada pelos pais, que morava no andar de cima. Apesar de baseado no original japonês de Hideo Nakata – mesmo criador de Ringu –, Água Negra, porém, concentra-se menos no terror sobrenatural e nos elementos fantásticos da narrativa e mais no drama psicológico e familiar de Dahlia. Assim, embora o fantasma da menina desaparecida vague pelo prédio em decomposição e atemorize as personagens recém instaladas, ele apenas contribui para o enlouquecimento progressivo da heroína, emocionalmente abalada pelas rejeições que sofreu da mãe, que a odiava, e do ex-marido, que não hesita em afundá-la na paranóia para conquistar a guarda da filha.

Ao invés de mais uma narrativa de terror, somente outro conto moral sobre a dissolução da família. A transformação que Walter Salles opera em Água Negra, de fato, permeia sua filmografia, que consiste em retrabalhar as estruturas convencionais dos gêneros cinematográficos estabelecidos a fim de “enobrecê-los” e de dar-lhes “profundidade”, de modo que a obra do cineasta se funda a partir do desprezo que ele nutre a respeito do material de origem. A esquizofrenia do diretor se mostra, por exemplo, em A Grande Arte, única tentativa verdadeira de realizar um thriller (sob a chancela de estar adaptando Rubem Fonseca), e, sobretudo, em Central do Brasil e em Diários de Motocicleta, road movies nos quais pesam a consciência social e a descoberta afetiva, respectivamente, do país e da América Latina.

Descoberta afetiva que, seja no Brasil ou na América do Sul, faz dos lugares visitados por Dora e por Che Guevara meros cartões postais, belezas plásticas embaladas para consumo turístico imediato. Assim como em Abril Despedaçado, em que o sertão da vendetta é mitificado pela imaginação infantil de Pacu, em Água Negra Walter Salles volta a provar sua incompetência em lidar com o espaço: o prédio, que deveria ser o depositário vivo de memórias, de dores e de sofrimentos latentes, é apenas mais uma locação morta, reduzida ao óbvio abrir e fechar de portas comuns aos filmes de terror ruins. Sempre apresentado através de planos aéreos, o cenário principal jamais é penetrado pelo cineasta, que prefere manter distância do organismo que ele teme ganhar vida, ao mesmo tempo em que seu entorno, a ilha de Jersey, acaba desaproveitado, pois, salvo a referência de que possui a melhor escola da cidade, serve para que se conheça a maior eficiência e rapidez do metrô em relação ao teleférico.

Mesmo que pouco à vontade com o cinema de gênero, Walter Salles, paradoxalmente, usa e abusa da fórmula imposta aos filmes de terror a partir de Alien, O Oitavo Passageiro. São marcantes, em Água Negra, a fotografia escura e as cores saturadas, as entradas e saídas repentinas do quadro, a constância da música (dos piores momentos de Ângelo Badalamenti, parceiro habitual de David Lynch) que sempre cresce para exibir acontecimentos de maior tensão, situações misteriosas como a máquina de lavar que enguiça ou os passos que se escutam do apartamento de cima, tudo com o propósito de gerar sustos fáceis nos espectadores desavisados. Na preguiça geral com que o diretor conduz sua estréia em Hollywood, sobram para John C. Reilly e para Tim Roth papéis sem função dramática – este último, na pele do advogado solitário, cujo aparente relacionamento afetivo com Dahlia não avança – e, para Pete Postlethwaite, show de canastrice, a presença como porteiro que tudo sabe e nada diz, espécie de bicho-papão mal-humorado.

Walter Salles jamais define o que Água Negra quer ser quando crescer: apesar do foco principal no drama psicológico de Dahlia, ora ele também apela para o terror sobrenatural, ora flerta com o suspense barato (os garotos que andam pelo prédio). E pensar que o gênero já proporcionou exemplos de excelência como O Iluminado, de Stanley Kubrick, ou A Salvo, de Todd Haynes. Ambos, contudo, apostavam na iluminação total, em que o quadro inteiro fica à mostra, e no estranhamento que os personagens sentem com o espaço orgânico – seja o Hotel Overlook em relação a Jack Nicholson no primeiro filme; seja a casa, onde algo está errado, da bem comportada esposa interpretada por Juliane Moore no segundo.

Paulo Ricardo de Almeida