a malvada
de Joseph Mankiewicz, All About Eve, 1950, EUA

A última edição do Oscar trouxe a disputa memorável entre Menina de Ouro, de Clint Eastwood, e O Aviador, de Martin Scorsese. Mesmo os mais anti-hollywoodianos não ficaram indiferentes à noite que pôs, lado e lado e cabeça a cabeça, os maiores cineastas americanos em atividade no páreo pelas estatuetas. No entanto, embora há muito não acontecesse, a competição entre filmes notáveis já foi regra nas festas da Academia como, por exemplo, em 1950, quando A Malvada, de Joseph L. Mankiewicz, e Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder, se confrontaram. Além do atrativo de ver Bette Davis e Gloria Swanson, verdadeiras divas, indicadas ao prêmio de melhor atriz (ganho por Judy Hollyday, em virtude da divisão dos votos), havia o embate entre os diretores / roteiristas mais importantes do pós-guerra. Se, à época, A Malvada levou a melhor, hoje Mankiewicz permanece quase esquecido, ao contrário de Wilder, que angariou prestígio e reconhecimento no imaginário cinematográfico. É hora, pois, de dar crédito ao responsável por Quem É o Infiel, A Malvada, Cleópatra e Jogo Mortal, não apenas criador de personagens irônicos e de diálogos afiados, como também figura de ponta da modernidade fílmica, seja ao trazer de volta a narrativa não-linear proposta por Orson Welles em Cidadão Kane, seja ao questionar os diversos papéis interpretados pelos indivíduos nos relacionamentos que estruturam a vida em sociedade.

Em A Malvada, o teatro não é fim, mas meio: espaço de relações simbólico que serve de metáfora para os jogos de força econômicos e sociais que pautam a América depois da Segunda Guerra Mundial. Não se trata de filme acerca do teatro, como se costuma pensar, e sim sobre atuações, performances, máscaras, que ocorrem independentes da presença literal do palco. Mankiewicz, de fato, jamais encena, na tela, as peças nas quais os personagens estão envolvidos, pois prefere se concentrar na ascensão inescrupulosa da jovem Eve Harrington, que se vale dos métodos mais corruptos a fim de tomar o lugar da estrela Margo Channing e, em conseqüência, alcançar fama e sucesso. Repetindo a narrativa não-linear de Quem É o Infiel (pelo qual também recebeu Oscars de direção e roteiro), o cineasta apresenta a história de Eve através de longo flash-back em que, como em Cidadão Kane e em Rashomon, o ponto de vista que a conduz se encontra estilhaçado entre diversos observadores – Margo, Addison De Witt e Karen Richards. Todavia, ao contrário de Welles e de Kurosawa, o resultado obtido em A Malvada não é o quadro fragmentado e relativo composto por percepções contingentes e parciais, enorme quebra-cabeça onde faltam inúmeras peças, mas antes imagem totalizante, na qual se destaca a voz de De Witt – não por acaso, crítico de profissão, que está acima do espetáculo para analisá-lo com cinismo e ironia – que se sobrepõe às demais para guiar a atenção do espectador.

Não há diferenças significativas entre as aspirações de Eve e de Miss Caswell (que, segundo a língua de trapo de De Witt, formou-se na “escola de arte dramática Copacabana”). Breve participação da insinuante e ainda desconhecida Marilyn Monroe, Caswell é adepta do teste do sofá, utilizando-se de favores sexuais para, em troca, conseguir testes com produtores e subir rumo às estrelas. No teatro, na televisão, no cinema – a insinuação de que famosa atriz presente na festa de Margo também se prostituiu para atingir seu objetivo –, as relações se resumem a redes de interesses em que estão em jogo o controle, a submissão e a humilhação como práticas cotidianas visando à mobilidade social. Poder e ambição que, entretanto, não se restringem ao microcosmo das artes, posto que permeiam e de difundem no meio capitalista onde o entretenimento se transforma em indústria: se Eve Harrington, agora, aproxima-se de Margo Channing e, a partir de mentiras e de fingimentos, manipula a todos (e por eles, em contrapartida, é manipulada) para, ironicamente, apenas concretizar o talento que possui, não custa lembrar que, no passado (que De Witt usa a fim de aprisioná-la), ela se tornou amante do patrão na empresa em que trabalhava, validando o mesmo método de ascensão econômica popularizado por Caswell e por tantos outros.

Eve, evil, Eva. No gênese bíblico, a primeira mulher é seduzida pela serpente e acaba expulsa do Paraíso. Desde eras imemoriais, os descendentes de Adão, condenados à existência de sofrimentos e de atribulações, anseiam pelo retorno ao Jardim do Éden – alguns pelo caminho da justiça, os demais pela trilha da corrupção. A Eva de Mankiewicz busca a Felicidade e a Harmonia, nos seus próprios termos, através do sucesso que o teatro pode lhe proporcionar. Ela deseja se adequar à sociedade, cuja característica primordial é a liberdade de se mover entre as classes sociais, justamente trocando de papel, ao se transformar de proletária em burguesa. Se Eve Harrington representa o novo, Margo Channing aponta para o velho que deve ser substituído e que, consciente da alta rotatividade e da descartabilidade promovida pelos EUA do pós-guerra, também procura atuar mais adequadamente, quando constrói núcleo familiar, seja por meio dos amigos, seja pelo casamento com Bill Sampson. Eve e Margo, duas faces da mesma moeda, ainda sonham com a ilusão de serem livres, como se pudessem tomar o destino nas próprias mãos, como se fossem capazes de moldar o futuro ao interpretar sempre diferentes personagens. Porém, enquanto o palco continuar o mesmo, os textos não importam, já que o valor de mercadoria imposto a elas e a seus relacionamentos permanecerá inalterado.

Vinte anos antes da entrada em cena de Rainer Werner Fassbinder, Mankiewicz, em A Malvada, já trata da necessidade patológica por relacionamentos, visto que compreende o qual impossível se constitui a vida fora do meio social. Não há liberdade, somente o desespero absoluto das tentativas, mesmo que os personagens estejam a par da inútil empreitada. No cinema do irmão caçula de Herman J. Mankiewicz (co-roteirista de Cidadão Kane), os atores estão conscientes dos papéis que assumem – a mise en scène triunfal da rainha do Egito apara entrar em Roma no épico Cleópatra, o amante que se fantasia de policial para se vingar do marido traído em Jogo Mortal, os três casais em dúvida quanto à fidelidade do cônjuge em Quem É o Infiel. Em A Malvada, além de Addison De Witt, a única que duvida de imediato das intenções de Eve é Birdie Coonan: outrora atriz principal, Birdie, agora camareira de Margo, sabe como ninguém a amargura e o desengano de estar no final da cadeia produtiva, quando a mercadoria, depois de nascer com Eve e amadurecer com Margo, finalmente morre. Sem antes, contudo, renascer com a fã multiplicada em frente ao espelho.

Paulo Ricardo de Almeida