Sr. e sra. smith
Doug Liman, Mr.and Mrs. Smith, EUA, 2005

Daqueles casos a serem examinados com muito cuidado, Sr. & Sra. Smith é um filme que vai buscar toda a sua existência num combustível do absurdo. Não é difícil descartá-lo como uma visão conservadora da América, consolidada com a reunião do casal posto a se assassinar de volta ao matrimônio, sem falar na quantidade absurda de possíveis leituras com relação ao armamento e o militarismo – a estas tantas possíveis visões, calcadas em coisas que estão no filme, a própria obra responde com seus cortes, giros e estrutura cinematográfica. Aqui a ordem é a do movimento, em especial aquele que se dá dentro do quadro, a tal ponto que, em certo momento, as pessoas realmente chegam a se parecer com objetos de cena prontos a explodir a qualquer momento.

Doug Liman é um destes cineastas cuja trajetória já deixou de ser uma curiosidade há algum tempo. Forte nome do cinema independente, onde realizou um belo projeto que pertencia a seu ator em questão naquele momento (Swingers e Jon Favreau), e posteriormente uma simpática picaretagem (Vamos Nessa), migrou o mais rápido possível para dentro da indústria, curiosamente adentrando o gênero de ação (antes deste filme, fez A Identidade Bourne), tendo em vista que suas maiores qualidades sempre apontaram para a comédia; ainda que A Identidade Bourne não seja um fracasso, não surpreende então que os momentos mais fortes de Sr. & Sra. Smith sejam mesmo os de comédia. Liman tende a conduzir tudo com um sorriso no rosto, evacuando todos os possíveis aspectos trágicos do embate, o que no geral faz com que as cenas de ação ganhem formas um tanto interessantes. E aí vale ressaltar que a partir de certo momento, o filme não deixa de ter ação por um instante. Na aposta em encontrar as chaves cômicas, Angelina Jolie acaba por ficar um pouco de lado, enquanto Brad Pitt tem alguns momentos realmente fortes de comédia, lembrando o tom de suas performances nos recentes Onze Homens e Um Segredo e Doze Homens e Outro Segredo, auxiliado em cena ainda por Vince Vaughn, com quem Liman já havia trabalhado (e muito bem) em Swingers, garantindo uma boa base cômica ao filme.

Se não há nenhuma novidade em filmes satíricos sobre matrimônio em crise, aqui ainda há ação de maneira megalomaníaca - mas talvez o grande acerto de Liman seja ao não tentar dar algum tipo de credibilidade factual para o que narra. Logo de cara vemos como o casal se conheceu e como vive – ambos assassinos profissionais que escondem suas profissões há seis anos um do outro, vivendo sobre o mesmo teto, com uma quantidade ridiculamente absurda de armas escondidas pela casa. Tudo filmado sem nenhuma crença na veracidade dos fatos, mas com total crença na força cinematográfica que tudo isso pode gerar – é daí que surgem tantos e tantos outros absurdos saudáveis, às vezes cuspidos, às vezes bem arquitetados, mas que vão aos poucos tomando conta de vez em cena. É verdade que Liman está longe de ser um grande cineasta e não tem a habilidade necessária pra jogar isto em cena funcionando sempre - ele abusa das fírulas e, muitas vezes sem saber o que fazer, a partir delas se perde, faltando um certo talento especial com o pôr-em-cena para articular todo o caos que cria, mas o conceito de partida é bastante forte.

A química entre Pitt e Jolie só vai funcionar pra valer a partir do começo do “quebra-pau”, mas Liman consegue dinamizar bem o princípio do filme, permitindo que os momentos “solo” do casal sejam o foco inicial, mas também o ponto do matrimônio emperrado em que vivem. O tiroteio final avança para além dos absurdos, dispensando até mesmo um final – foram filmados dois duelos finais diferentes entre o casal e seus patrões, mas a conclusão final é a de que o filme perderia seu tom com este embate. E seu tom estilizadamente over, se não chegasse a cansar, seria o trunfo final do filme, já que sintetiza tudo aquilo que ele representa. Não há qualquer ordem lógica dos atos, mas ao mesmo tempo há uma noção muito bem postada de espaço. Utilizando sempre bem os dublês (seus objetos de cena). Sr. & Sra. Smith é um filme tão inquieto que, até mesmo numa cena em que não haveria qualquer razão de mover a câmera (quando o casal fica frente à câmera no terapeuta), ele não consegue deixar de fazer pequenos movimentos de um lado ao outro. Talvez o grande problema do filme seja que ele nunca consiga brilhar para além de uma base conceitual interessante, mas vale a tentativa.

Guilherme Martins