O mestre de cerimônias
Jacques Tati anuncia que todos nós, tanto artistas quanto
espectadores, somos os palhaços e malabaristas do espetáculo.
Em Parade,
seu último longa-metragem (realizado para a televisão
sueca), o criador de Monsieur Hulot não apenas homenageia
o circo e a pantomima que o forjaram, como também radicaliza
os experimentos com a construção dos espaços e com a
funcionalidade dos objetos: a transformação permanente
dos códigos que estruturam a sociedade – cada vez mais
mecânica e homogênea –, ou seja, a associação de significados
fora do comum a significantes em aparência banais para
gerar novos sentidos os quais, ao romperem com os clichês,
reintroduzem o afeto em falta na modernidade. Ao contrário
de O Carrossel
da Esperança, As
Férias de Mr. Hulot, Meu Tio, Playtime e As Aventuras de Mr.
Hulot no Tráfico Louco, em Parade
o público – hospedeiro final do vírus sensível propagado
por Tati – é de fato materializado na tela, pois se
trata de convidar a platéia, no circo ou na sala escura,
a fim de fazer arte através do poder da imaginação,
questionando a falsa premissa de que, no cinema, o artista
está somente na emissão, e não na recepção, da mensagem.
Segundo Jean-Luc Godard,
Jacques Tati procura problemas onde eles não existem,
e os encontra. Tati explora e revela os absurdos da
assim chamada “normalidade” que, entretanto, de normal
nada possui, uma vez que quaisquer relacionamentos entre
os homens e, por conseguinte, destes com o mundo que
os cerca, estão pautados sobre modelos pré-estabelecidos
de comportamento pessoal e de percepção dos objetos
e dos acontecimentos que se exibem para serem apreciados,
garantindo a continuação do processo civilizatório ocidental
baseado no racionalismo, o qual se manifesta, ao longo
do século XX, sobretudo através do império tecnológico
e da nova organização das forças produtivas. Em Meu Tio, por exemplo, o cineasta ridiculariza
a casa futurista dos Arpel – onde “tudo se comunica”
(segundo o bordão publicitário proferido pela irmã de
Hulot), mas em que, paradoxalmente, não há comunicação
entre os membros da família – ao contrapô-la à vida
nostálgica da vila onde mora o atrapalhado protagonista,
enquanto em Playtime o “refúgio” de Mr. Hulot desaparece
por completo, restando apenas a cidade sistematizada
e controlada, cujos ambientes são todos iguais, cujos
passantes (degenerações do flaneur baudelairiano, feito mero turista)
comportam-se todos da mesma maneira.
Playtime,
tempo de divertir, tempo de brincar. Na Paris representada
por Jacques Tati no filme que o levou à falência, o
trabalho abandona a disciplina corporal da fábrica e
dos meios de confinamento para assumir o controle lúdico
de pensamentos e de emoções. Ao invés de restritos a
locais específicos, os flaneurs de Playtime circulam
livremente pela cidade, porém tão robóticos que se faz
impossível diferenciar freiras de turistas, tão apressados
pela velocidade do mundo que não conseguem sequer tirar
fotografias a fim de preservar-lhe a memória, tão insensíveis
aos outros e ao meio que nada realizam além de andar
de lá para cá em fila indiana, tal qual gado a caminho
do abate. Meio que, na verdade, não precisa mais ser
visto, pois se constitui de ambientes que mantêm entre
si semelhança absoluta: aeroporto idêntico a um hospital,
feira de amostras que se parece com escritórios de empresa,
apartamentos que lembram vitrines de lojas, engarrafamento
que remete ao carrossel do parque de diversões. Espaços
homogeneizantes, de uma Paris que se apreende somente
pelos reflexos fugidios nos vidros de portas e de janelas,
que se encontra devidamente regulada por computadores
invisíveis, os quais processam e avaliam informações
sem a participação do homem, liberado pela máquina para
o jogo social.
Contudo, os ambientes
impessoais, em Meu Tio e em Playtime, são
postos em xeque pelo olhar inocente de Hulot, que recupera,
na casa futurista ou na cidade programada, o afeto perdido,
através da descoberta da diferença, capaz de explodir
com a similaridade existente tanto nos lugares, quanto
nos personagens. Seja aproximando pai e filho em Meu Tio, seja se multiplicando em cena nos demais atores em Playtime, Mr. Hulot quebra as imagens especulares
que a tudo igualam, para criar novas possibilidades
de vida nas quais as relações com os homens, com os
objetos e com os espaços são encaradas sob perspectivas
que duvidem e mesmo reneguem os pressupostos sociais
aceitos como verdadeiros. Por que não uma poltrona se
transformar em uma cama, quando virada pelo avesso?
Por que não um ramo de flor se tornar postes de auto-estrada?
Onde está estabelecido que acender cigarro em sala de
espera não é engraçadíssimo?
É o princípio da transformação
perpétua, da potência virtual, que rege o cinema de
Jacques Tati. Em Parade, na metamorfose sensível da realidade, o cineasta prescinde
de Mr. Hulot: de volta ao circo e à pura pantomima,
acompanhado por palhaços, mágicos, músicos, engolidores
de espadas, equilibristas e malabaristas, Tati, pela
primeira vez, inclui os espectadores na diegese do filme.
O tema último de Parade é o público, a capacidade que este
tem de, por intermédio da arte, tornar-se igualmente
artista. Como compreender a radical transmutação do
espaço sugerida pelo diretor – um único ambiente, o
picadeiro, que se transforma infinitamente em campo
de futebol, quadra de tênis, ringue de boxe, margem
de lago, local para equitação – a não ser através na
crença no poder imaginativo e criativo da platéia, a
qual preenche as lacunas no que lhe é mostrado e reinventa
a si mesma? Os cenários que adornam o picadeiro, não
por acaso, encontram-se em construção ao longo do filme,
indício deixado por Jacques Tati para fazer daquele
palco espaço de fase onde o vir-a-ser é a regra, não
a exceção. E o que dizer dos pintores que se tornam
equilibristas e malabaristas, do grupo de palhaços-atletas
que ora aparecem como jogadores de hóquei, ora como
músicos, ora como toureiros, do operário e do espectador
que se provam mágicos, ou do próprio mestre de cerimônias,
que vira até guardas de trânsito inglês e francês? Ou,
finalmente, da estrela que se transforma em pente, das
latas de tinta utilizadas como instrumentos musicais,
do piano que se revela também cavalo (aparelho de ginástica)
e cama elástica?
O
sentido de Parade
está nas duas crianças que assistem ao espetáculo e
que são acompanhadas pela câmera de Jacques Tati. A
princípio entediadas, elas se deixam levar pela magia
dos acontecimentos para, no fim, entrarem no picadeiro
vazio e, com curiosidade infantil, experimentarem os
vôos oferecidos pela imaginação. Tati, agora espectador,
observa-as enquanto fazem arte: o clichê estruturante
do cinema – a divisão entre artistas e espectadores
– mostra-se, na última obra-prima do diretor, definitivamente
exorcizado.
Paulo Ricardo de Almeida
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