Parade
de Jacques Tati, Parade, 1974, França/Suécia

O mestre de cerimônias Jacques Tati anuncia que todos nós, tanto artistas quanto espectadores, somos os palhaços e malabaristas do espetáculo. Em Parade, seu último longa-metragem (realizado para a televisão sueca), o criador de Monsieur Hulot não apenas homenageia o circo e a pantomima que o forjaram, como também radicaliza os experimentos com a construção dos espaços e com a funcionalidade dos objetos: a transformação permanente dos códigos que estruturam a sociedade – cada vez mais mecânica e homogênea –, ou seja, a associação de significados fora do comum a significantes em aparência banais para gerar novos sentidos os quais, ao romperem com os clichês, reintroduzem o afeto em falta na modernidade. Ao contrário de O Carrossel da Esperança, As Férias de Mr. Hulot, Meu Tio, Playtime e As Aventuras de Mr. Hulot no Tráfico Louco, em Parade o público – hospedeiro final do vírus sensível propagado por Tati – é de fato materializado na tela, pois se trata de convidar a platéia, no circo ou na sala escura, a fim de fazer arte através do poder da imaginação, questionando a falsa premissa de que, no cinema, o artista está somente na emissão, e não na recepção, da mensagem.

Segundo Jean-Luc Godard, Jacques Tati procura problemas onde eles não existem, e os encontra. Tati explora e revela os absurdos da assim chamada “normalidade” que, entretanto, de normal nada possui, uma vez que quaisquer relacionamentos entre os homens e, por conseguinte, destes com o mundo que os cerca, estão pautados sobre modelos pré-estabelecidos de comportamento pessoal e de percepção dos objetos e dos acontecimentos que se exibem para serem apreciados, garantindo a continuação do processo civilizatório ocidental baseado no racionalismo, o qual se manifesta, ao longo do século XX, sobretudo através do império tecnológico e da nova organização das forças produtivas. Em Meu Tio, por exemplo, o cineasta ridiculariza a casa futurista dos Arpel – onde “tudo se comunica” (segundo o bordão publicitário proferido pela irmã de Hulot), mas em que, paradoxalmente, não há comunicação entre os membros da família – ao contrapô-la à vida nostálgica da vila onde mora o atrapalhado protagonista, enquanto em Playtime o “refúgio” de Mr. Hulot desaparece por completo, restando apenas a cidade sistematizada e controlada, cujos ambientes são todos iguais, cujos passantes (degenerações do flaneur baudelairiano, feito mero turista) comportam-se todos da mesma maneira.

Playtime, tempo de divertir, tempo de brincar. Na Paris representada por Jacques Tati no filme que o levou à falência, o trabalho abandona a disciplina corporal da fábrica e dos meios de confinamento para assumir o controle lúdico de pensamentos e de emoções. Ao invés de restritos a locais específicos, os flaneurs de Playtime circulam livremente pela cidade, porém tão robóticos que se faz impossível diferenciar freiras de turistas, tão apressados pela velocidade do mundo que não conseguem sequer tirar fotografias a fim de preservar-lhe a memória, tão insensíveis aos outros e ao meio que nada realizam além de andar de lá para cá em fila indiana, tal qual gado a caminho do abate. Meio que, na verdade, não precisa mais ser visto, pois se constitui de ambientes que mantêm entre si semelhança absoluta: aeroporto idêntico a um hospital, feira de amostras que se parece com escritórios de empresa, apartamentos que lembram vitrines de lojas, engarrafamento que remete ao carrossel do parque de diversões. Espaços homogeneizantes, de uma Paris que se apreende somente pelos reflexos fugidios nos vidros de portas e de janelas, que se encontra devidamente regulada por computadores invisíveis, os quais processam e avaliam informações sem a participação do homem, liberado pela máquina para o jogo social.

Contudo, os ambientes impessoais, em Meu Tio e em Playtime, são postos em xeque pelo olhar inocente de Hulot, que recupera, na casa futurista ou na cidade programada, o afeto perdido, através da descoberta da diferença, capaz de explodir com a similaridade existente tanto nos lugares, quanto nos personagens. Seja aproximando pai e filho em Meu Tio, seja se multiplicando em cena nos demais atores em Playtime, Mr. Hulot quebra as imagens especulares que a tudo igualam, para criar novas possibilidades de vida nas quais as relações com os homens, com os objetos e com os espaços são encaradas sob perspectivas que duvidem e mesmo reneguem os pressupostos sociais aceitos como verdadeiros. Por que não uma poltrona se transformar em uma cama, quando virada pelo avesso? Por que não um ramo de flor se tornar postes de auto-estrada? Onde está estabelecido que acender cigarro em sala de espera não é engraçadíssimo?

É o princípio da transformação perpétua, da potência virtual, que rege o cinema de Jacques Tati. Em Parade, na metamorfose sensível da realidade, o cineasta prescinde de Mr. Hulot: de volta ao circo e à pura pantomima, acompanhado por palhaços, mágicos, músicos, engolidores de espadas, equilibristas e malabaristas, Tati, pela primeira vez, inclui os espectadores na diegese do filme. O tema último de Parade é o público, a capacidade que este tem de, por intermédio da arte, tornar-se igualmente artista. Como compreender a radical transmutação do espaço sugerida pelo diretor – um único ambiente, o picadeiro, que se transforma infinitamente em campo de futebol, quadra de tênis, ringue de boxe, margem de lago, local para equitação – a não ser através na crença no poder imaginativo e criativo da platéia, a qual preenche as lacunas no que lhe é mostrado e reinventa a si mesma? Os cenários que adornam o picadeiro, não por acaso, encontram-se em construção ao longo do filme, indício deixado por Jacques Tati para fazer daquele palco espaço de fase onde o vir-a-ser é a regra, não a exceção. E o que dizer dos pintores que se tornam equilibristas e malabaristas, do grupo de palhaços-atletas que ora aparecem como jogadores de hóquei, ora como músicos, ora como toureiros, do operário e do espectador que se provam mágicos, ou do próprio mestre de cerimônias, que vira até guardas de trânsito inglês e francês? Ou, finalmente, da estrela que se transforma em pente, das latas de tinta utilizadas como instrumentos musicais, do piano que se revela também cavalo (aparelho de ginástica) e cama elástica?

O sentido de Parade está nas duas crianças que assistem ao espetáculo e que são acompanhadas pela câmera de Jacques Tati. A princípio entediadas, elas se deixam levar pela magia dos acontecimentos para, no fim, entrarem no picadeiro vazio e, com curiosidade infantil, experimentarem os vôos oferecidos pela imaginação. Tati, agora espectador, observa-as enquanto fazem arte: o clichê estruturante do cinema – a divisão entre artistas e espectadores – mostra-se, na última obra-prima do diretor, definitivamente exorcizado.

Paulo Ricardo de Almeida