a fantástica fábrica de chocolate
Tim Burton, Charlie and the Chocolate Factory, EUA, 2005

A Câmara dos Horrores do Dr. Burton

O horror da fábula

A fábula de horror infantil está no cerne de toda a obra de Tim Burton. Mais do que qualquer outro cineasta, ele é aquele que melhor absorveu a idéia de que um olhar infantil sobre qualquer fábula revela um objeto de horror bastante particular. Se este A Fantástica Fábrica de Chocolates termina por se revelar o melhor filme do cineasta em muito tempo (desde Ed Wood, talvez?), isto é em parte porque, pela primeira vez desde sua estréia em As Grandes Aventuras de Pee-Wee, ele se vê as voltas com material que seja antes de mais nada infantil. A Fantástica Fábrica de Chocolates é um objeto estranho no cinema americano, um curioso star vehicle onde a estrela é seu próprio autor, trabalhando aqui com material que parece ter sido pensado sobre medida para ele. Não se trata de Burton simplesmente canibalizar as tendências que o deixaram famoso – embora, sem dúvidas, A Fantástica Fábrica de Chocolates seja o tipo de filme de autor que o espectador familiarizado reconhece ao primeiro passar de olhos (e de fato a primeira imagem de neve artificial, preenchida com a trilha, excepcional, de Danny Elfman, é inconfundível) –, mas de um retorno necessário à matéria original para buscar um novo foco após um filme um tanto desastrado (Peixe Grande). Nada mais distante de um filme em que o autor esteja preso a uma camisa de força de tiques pessoais do que este A Fantástica Fábrica de Chocolates, onde cada peça delirante é um grande exercício de liberdade por parte de um cineasta que há muito não se mostrava tão solto.

O cinema de Burton é dominado por um medo primordial. Um medo que surge do imaginário, que vem embutido no homem desde que era um feto - imagem-feto talvez seja uma boa forma de descrever a maneira como Burton revela o horror na beleza das suas imagens sintéticas. Elas revelam o desejo – seja dos personagens, seja do cineasta – de colocar para fora este imaginário inicial que o homem carrega consigo desde o berço, mas também a sua consciência de que estas imagens têm seu contraponto, que estas imagens podem estar assombradas. Daí ser óbvio que o verdadeiro horror que Burton acredita não se mostrara nas seqüências iniciais do cotidiano miserável da família de Charlie; o cineasta vê muito mais horror no espetáculo da fábrica de chocolates do que na pobreza. Diz muito sobre a estratégia de fábula de horror infantil que – num dos melhores achados de Burton – o pai castrador seja um dentista. Afinal, não há muitas imagens mais assustadoras para uma criança do que a figura do dentista.

A imagem-feto de Tim Burton é uma que reconhece o imaginário como uma espécie de maquina sempre próxima de se revelar defeituosa. Logo, a fábrica de Willy Wonka é um grande parque de diversões industrializado, mais um parque temático do que uma fábrica de chocolates. Parques de diversões são o cenário do gozo infantil, mas também são o espaço por excelência do filme de horror. São as mais doces imagens que revelam seu lado mais doentio; cada uma das crianças do filme – com exceção de Charlie – são figurativamente mortas por aquilo que mais apreciam. Há um lado sinistro na coreografia dos Oompas Loompas, uma celebração de morte cheia de escárnio pelo cadáver, mesmo que saibamos que, sendo este um filme infantil, nenhuma das crianças deve estar realmente morta -  mas isto pouco importa, já que o horror infantil reside com igual força na frustração e no fracasso. Metaforicamente, se não de fato, Wonka está ali assassinando cada um daqueles moleques a sangue frio (ele nem percebe quando sobra somente um).

A visita à fábrica de chocolates não é o passeio agradável que as crianças esperam, mas a entrada numa câmera de horror que a sua maneira ultra-colorida se assemelha aquelas dos médicos loucos de filmes B preto e branco do início dos anos 60 que o cineasta tanto aprecia. Desde Tex Avery o cinema infantil constrói algumas das imagens mais violentas que residem no nosso imaginário coletivo e aqui Burton dá as suas contribuições mais diretas. Veruca Salt prepara-se para agarrar o esquilo que escolheu como seu novo animal de estimação, vemos o esquilo pelo ponto de vista da garota e a garota pelo ponto de vista do esquilo; o animal, criatura até ali adorável do universo Disney (é até mesmo antropoformizada), salta sobre ela, seguido pela horda formada pelos demais esquilos. A imagem da criança mimada atacada pelo que ela escolhera como seu novo animal de estimação está entre as mais fortes que Burton já produziu. O close do esquilo antes do ataque ao mesmo tempo uma quase criatura de pelúcia e uma besta-fera pronta para explodir em violência talvez sintetize o filme. Vale destacar aqui o excelente uso de lentes para distorcer a imagem por parte de Burton e seu fotografo Philippe Rousselot, cujo sucesso não tem paralelos na obra do cineasta.

O instinto do homem

Se A Fantástica Fábrica de Chocolates é a seqüência a muito aguardada de As Grandes Aventuras de Pee-Wee, com seu jardim das delicias infantil assombrado, revela-se também a continuação lógica de O Planeta dos Macacos. A porta de entradas da fábrica de Wonka marco o momento em que o homem passa a dar ouvidos aos seus instintos mais animalescos. De certa forma, é como se o senso de horror primordial que tudo cobre fosse aos poucos reduzido tudo a uma questão de instinto. Se num primeiro momento há o estranhamento geral ante a gargalhada histérica de Wonka, diante da primeira área da fábrica este tom a todos contagia. Wonka informa que tudo ali é comestível, e as crianças e seus pais se entregam à selva. Neste filme onde os sentidos deslizam e as imagens se revelam sempre em transformação – a lógica do filme é apresentada honestamente por Burton já na anedota sobre o príncipe indiano que deixa de comer seu castelo de chocolate para quase ser soterrado por ele – é como se todos fossem dominados pela selva. Um garoto desanda a comer grama, outros se dedicam a destruição pura e simples. Seus pais não se comportam melhor. Dali por diante a selvageria impera no comportamento das personagens – e é brilhante a forma como Burton demole a fronteira criança/adulto. Se o cinema de hoje é predominantemente infantilizado, Burton realiza aqui uma das criticas mais ácidas a este estado das coisas – como também da máquina infernal que a fábrica de Burton se revela na sua construção de cenários vingativos. A Fantástica Fábrica de Chocolates é um dos filmes mais saudavelmente sádicos que surgem em muito tempo.

Se o animalesco impera, a exceção é o jovem Charlie, que Freddie Highmore interpreta com uma passividade rara na figura central de um filme tão hiper-ativo. A Fantástica Fábrica de Chocolates se estrutura como uma competição por eliminação, mas, ao contrário do que o formato normalmente sugere, o que se celebra aqui não é o mérito, mas a ausência de demérito. Como Wonka deixa claro ao declará-lo o vencedor, Charlie ganha por ser o menos chato dos fedelhos. Todos os atores do filme são convidados por Burton a se prenderem em uma nota central, Highmore não é exceção, mas a dele é a de reserva. É como se dentro salve-se quem puder do filme, a única forma de manter humanidade intacta é via uma operação de quase desaparecimento. Em alguns momentos chegamos a nos esquecer que o pequeno Charlie e seu avô estão ali, dada a agressividade das atuações ao redor deles.

O espetáculo do horror

O primeiro ponto da visita à fábrica é um show de bonecos, em que a convenção nos faz esperar que se revele Willy Wonka. De fato estamos diante do seu cartão de visitas, mas, em vez de o vermos surgir do palco, assistiremos ao espetáculo dos bonecos em chamas de forma bastante detalhada (faces derretendo, olhos saltando, etc). Quando Wonka surge, é para rir histericamente de seu próprio espetáculo. Está ali um homem que não apenas cria o horror, mas se deleita com ele. O horror em Burton está sempre no espetáculo. Logo, é preciso criar um grande show. As coreografias dos Oompas Loompas, por exemplo, transformam o sadismo num grande espetáculo de cultura pop. A destruição do último e mais insuportável – ao menos para Wonka – dos garotos se dá quando ele se transforma em um corpo televisivo. A fábrica como já dito é um grande parque temático, tudo nela parece ter de ser espetacular – e não industrialmente funcional, como se esperaria de uma central de produção-modelo. Tudo nessa fábrica será a sua maneira uma extensão do sinistro show de bonecos. Como os Oompas Loompas sabiam que poderiam encaixar o nome do garoto guloso na canção?, todos se perguntam. É óbvio: naquele ponto o horror precisava brotar, e aos Oompas Loompas cabe o papel de celebrá-lo.

Johnny Depp interpreta menos um personagem do que um mestre de cerimônias. O estranhamento que seu Wonka causa, a maneira que se mantém ao largo do espectador, deriva muito desta opção. Mesmo os flashbacks psicologizantes têm menos o efeito de explicar o personagem – até por ele não ser exatamente um – do que acrescentar uma camada a mais de distância, interrompendo a narrativa (basta observar como o filme, muito bem editado, parece sempre forçar a barra nas transições dos flashbacks). Se o filme é uma longa visita, o Wonka de Depp (que parece buscar imitar Lon Chaney nos maneirismos) está lá para envolver os garotos de forma que caiam vítimas dos seus próximos excessos. Um sádico moralista que, cheio de energia, manipula os garotos e seus pais para que encontrem seus fins. Uma figura desconfortável para se ancorar um filme, mas que outro tipo de mestre de cerimônias seria possível num filme de horror infantil?

Se Wonka tem alguma existência como personagem, a visita à sala de invenções é o momento em que ele chega mais próximo de deixar cair a máscara do grande performer. Porque Willy Wonka é um primo distante do Edward, Mãos de Tesoura, outro grande inventor (e este é o filme mais de invenção de Burton em muito tempo). A lógica de sua fábrica é a da sua própria satisfação como inventor. Por que criar um chiclete que vale por uma refeição? Bem, por que não? Todas as invenções que vemos existem a partir da sua lógica particular e nelas mesmas. Willy Wonka de Burton não é um grande industrial, mesmo que tenha uma fortuna, mas um grande artista. Suas invenções parecem protótipos destinados a permanecer para sempre longe das ruas.  Chocolate não precisa fazer sentido, ele nos lembra, assim como os filmes de Tim Burton. É o garoto entorpecido pela lógica do videogame que revolta Wonka, não há nada pior do que a falta de imaginação. Wonka, assim como Burton, é um grande fabulista a construir seu espetáculo de horror infantil. A Fantástica Fábrica de Chocolates é um grande elogio a fábulação, ao imaginário no que ele tem de mais lúdico e assustador. Tim Burton, retornando às bases fundadoras do seu cinema, talvez realize aqui a melhor síntese da sua crença nele.

Filipe Furtado