A CASA DE CERA
Jaume Collet-Serra, House of wax, EUA, 2005

A Engenharia dos Sádicos

São poucos os ambientes que possuem mais interesse cênico do que o parque de diversões: um complexo cujas dimensões e partes evocam um conflito natural entre um certo artificialismo sinistro e um lirismo juvenil; entre a emoção e a farsa que está na sintetização das formas, nos limites da mobilidade dos instrumentos - dos brinquedos -, no fato de esse ambiente estar rigidamente definido por fronteiras - do lado de lá já não vale mais, a jurisdição é do mundo. Todos os elementos desse espaço se conjugam nesse conflito. Todos: das luzes ao esmero carinhoso que envolve a própria idéia de construir e fazer funcionar um doce lugar de mentira. As estruturas são pura simulação, mas o movimento humano e as sensações condicionadas por elas não. Há nesse espaço uma fenda entre realidade e fantasia.

Não é um parque de diversões convencional, em sua definição como área de entretenimento público planejado em meio a barracas e brinquedos, que existe em A Casa de Cera. Mas é do conceito de parque de diversões que estamos falando. Um parque de ideais meio gregos, por assim dizer, em que vale menos os brinquedos propriamente ditos do que o rigoroso labor da confecção de seus ambientes. O objetivo final é a manutenção dos ambientes, feitos para serem adorados. Pelos donos, diga-se. Os freqüentadores solitários desse território. Toda a relação que o filme A Casa de Cera travará com seu espectador no fluxo da narrativa se baseia no posicionamento em uma zona limite entre o fantástico e o "real" (poderíamos chamar de possível). Numa espécie de convulsão cênica que nasce do cruzamento entre essas duas áreas, representados essencialmente por elementos concretos que são centrais no parque de diversões: arquitetura e corpos.

Na tétrica e francamente perturbadora proposta do filme, reminiscente do pesadelo folk americano B dos anos 70 (filmes baratos que se embrenhavam no profundo rural do país para, através desses intestinos geográficos, confrontar os personagens com comunidades macabras ou aberrações: agenda cinematográfica que na época resultou na montagem de pequenos estudos sobre civilização, medo e sobrevivência - o filme fundamental é The Hills Have Eyes, de Wes Craven, e o padrinho mais ilustre desse "estilo" é Mario Bava), há uma cidade fictícia. Ela é monitorada de uma casa, via controles de energia, por dois irmãos sádicos, gêmeos. Esses irmãos, sendo Vincent (o outro é Bo) portador de deformidades que em si poderiam esgotar a questão física de debate entre real e fantástico que há no filme, são autores intelectuais e práticos desse parque.

Os forasteiros desavisados que lá chegam, vindos do asfalto, das universidades, de um mundo de TV americana mais real do que qualquer outro, são capturados. Serão capturados exatamente para, depois de procedimento anatômico específico, se transmutarem em peças de um "freakshow", numa lógica de imagem com enorme ressonância do elemento "epiderme". Tornam-se peças processadas num hibridismo entre o orgânico da carne, que será mantida debaixo de camadas e camadas de cera aplicadas em uma espécie de laboratório-ateliê, dentro no porão da casa em que esses irmãos vivem. Camadas de cera, no caso, imitarão as formas e os traços dos corpos que estão debaixo dela. Esses novos corpos, réplicas perfeitas em cima do original, mestiços entre tecidos humanos e esculpidos, ou seja, "plásticos", povoarão as instalações da cidade-parque de diversões. Ficarão expostos em seus vários departamentos: nas lojas, na igreja, nas casas, no cinema antigo. Lá ficarão.

Jaume Collet-Serra se revela dos cineastas novos mais cuidadosos e atentos ao detalhe, à minúcia, desses processos, desse planejamento, e em sua conseqüente interferência nas imagens que engenha. O diretor consegue tecer um filme que é acima de tudo sobre o sonho da construção. O prazer divino da geração e do engendramento de um determinado sistema protético, mas "funcional", que, em seu desenho e em seus alicerces, imita algum outro. No caso, uma pequena cidade americana pacata e suas células vitais. Uma cidade retrô em seu desenho paisagístico e social mais clichê e aprazível, evocando tempos dourados american graffiti. Uma visão radicalizada, e perfeitamente inserida em linguagem de gênero terror, daquele prazer que meninos sentem com seus Legos.

Uma das forças do filme está na própria cidade, no sonho de Vincent e Bo, na forma como o diretor Collet-Serra elaborará esse sonho e conduzirá sua câmera por ali. Jaume maneja com habilidade essa "informação", a cidade, a ponto de ela ainda, como um brinquedo de várias faces, ainda se revelar, num filme de 110 minutos, no minuto 95. Apesar de Collet-Serra escolher claramente pontos determinados da cidade para desenvolver cada parte do filme, o desvelamento das unidades desse brinquedo é conduzido com calma. Há um claro diálogo, dos mais saudáveis, com os jogos de videogame de aventura ultramaleáveis, exatamente aqueles que tentam se aproximar mais do cinema. Jogos que apresentam uma dimensionalidade diferente, ampliada, em que personagens têm de abrir portas, se confrontar com o espaço e procurar as chaves para o progresso de sua trajetória. Cada ambiente da cidade comporta uma história, comporta uma possibilidade de avanço ou perda em sua mobília, em sua lógica interna.

Há intensa morbidez, mas antes de tudo uma placidez de olhos admirados na forma como essas estruturas da cidade - em seu regime de paralisia farsesca e bela e de plasiticidade - são estudadas pela câmera de Collet-Serra. Há sem dúvida um certo classicismo embutido nesse olhar. Se há uma virada para a violência extrema e para a escatologia em muitas cenas, é mais por que esses elementos pouco higiênicos condicionam parâmetros de conservação e continuidade desse parque; menos por um esgotamento de opções dramáticas e visuais. Fazem parte de seu abastecimento, de sua organização cotidiana. Afinal o reartesanato de corpos e a proteção do projeto dos irmãos dependem da brutalidade, de ações para desovar lixo corporal. Nesse sentido, Collet-Serra tenta, ousadamente, captar o perturbador exatamente ao tatear um "naturalismo" impossível no regime insano daquele lugar.

Além disso, interessa ao diretor, e isso é mais do que nítido, discutir essa qualidade de violência, sua digestão e o efeito, entre o visceral e o caricatural, que ela pode provocar em um público 2005. Entre mutilações e a manifestações hardcore da dor, há um ajuste sutil entre a expressão da sensibilidade dos corpos jovens no filme e o teste de sensibilidade do espectador em relação às agressões que aqueles corpos estão sofrendo. Essa virada para a escatologia é bancada por Collet-Serra muito também porque sua abordagem crua é combustível de uma "tabela" de gênero aqui a cada momento evocada e respeitada - mas progressivamente vitaminada e robustecida: a do cine das profundezas geográficas americanas e de seus monstros ocultos, mas prováveis, que praticam atos hediondos. Putrefatos, ou alienados, em uma história cultural, o próprio país.

É curioso pensar que sobretudo uma nação moderna ("nova"), como os EUA, clama por sua mitologia do terror dos que moram nos bosques, nas camuflagens das árvores, e à margem dos pactos sócio-culturais que com o tempo vão sendo inventados e refinados. Nada estranho para um país com acervo enorme de atrocidades cometidas entre essas árvores, nos séculos 19 e 20 (primeira metade sobretudo), excrementos da escravatura e de seu "pós", mal resolvido nos centros urbanos e fora deles. Uma idade na qual a sociedade rural nesse imaginário rudimentar do terror parece ter estancado ou se empalhado. Jaume Collet-Serra, um espanhol, eleva essa mitologia primitivista de forma tão alegórica quanto visceral. Nos faz pensar também, sendo A Casa de Cera um filme fruto de um cinema anterior, da década de 70, que não é estranho que em uma cultura tão visual esse "estilo" de medo tenha tido sua gestação e tenha sido tão bem implantado pelo próprio cinema.

É inegável que muito do encanto de A Casa de Cera reside na forma como Collet-Serra manuseia a percepção de seus personagens em relação à artificialidade epidérmica e paisagística do que vêem. Há uma clara observação sobre a crise de crença no olhar nas entranhas desse filme, já que todos os objetos se apresentam palpáveis para depois se revelarem falsos, no auge do filme. Réplica, original, artificial, orgânico. Brilhante é a maneira como o diretor contrabandeia esse jogo do objeto falso para a dimensão de percepções do público. Por que escalar Paris Hilton, que vive uma das componentes do grupo de jovens que no bosque se embrenhará e na cidade chegará, para esse filme? Poucas vezes na atualidade uma opção de casting foi tão saudável para a pretensão conceitual de uma obra. Principalmente porque a visão que o diretor lança sobre ela parece ser tão vulgarmente fetichista como é doentiamente obsessiva a relação dos irmãos gêmeos com as esculturas naturalistas de seu parque. Paris aparece no filme basicamente como um estranho artefato de sentidos e desejos masculinos jovens: na verdade é por meio dela que a relação construída desde o começo no filme, entre imagem e dispositivo, reverbera e se fecha como conceito. Plástico e pele, fantasia e realidade. Temas como gravidez, camisinha e voyeurismo orbitam seu corpo de modo que é possível entender Collet-Serra como tarado, brincando com taras de todas as filiações na atriz, de todas as instâncias: interiores e exteriores (nós).

Paris é um monte de pele e peitos anabolizados, carne e membros tão vistosos e estimulantes dos sentidos quanto artificiais. É uma escultura de cera perfeita, que anda e fala. Produto tão farto dessa mesa de quitutes calóricos que é o imaginário americano setor sexo, ela parece nascer como réplica de um certo modelo Malibu "blondie" de enchimento e turbinamento; de hedonismo pornô, nascido, ou amadurecido, na década de 90. Gritando, ou melhor urrando de pavor, e sendo absorvida pelo filme, via tratamento do diretor, como uma adolescente cujas fotos tarja preta poderiam estar aí rodando a net, ela sintetiza todos os conflitos epidérmicos de imagem do filme, que passam pela questão da réplica, da simulação perfeccionista de um modelo, e chegam ao equivoco da percepção.

Ratifica, para além de qualquer outra questão, todo o esforço de Jaume Collet-Serra numa mise en scène da aparência e da força da aparência, para um filme no qual a constituição das imagens, e de todo o desconforto do sinistro trabalhado na narrativa, gira em torno do que parece: da cortesia de um chucro caminhoneiro caipira de estrada (ele conduz os jovens à cidade, mas no final será de fato revelado em suas intenções) à animação elétrica de uma casa. Uma casa que primeiro é vista como porto seguro por essas jovens que na cidade chegaram com o objetivo de procurar outros dois, que por sua vez foram procurar combustível e não deram mais notícias. Na formosa casinha, tudo está ligado, sons, luzes, e há a sombra de uma velhinha. No ponto crucial, muito bem esperado por Collet-Serra, que conjuga tempo e planos com caligrafia visual das mais precisas, e também com o aditivo da montagem, a senhora que lá vive revela-se um desses objetos processados pelos irmãos, corpo embalsamado.

A Casa de Cera parte de uma conjugação quase simbiótica de arquitetura e corpos. Esses se locomovem a princípio em uma relação tradicional, mas que é sempre manancial de tensão, com um projeto paisagístico provinciano e sedentarizado, imutável: abrem portas, correm, andam e observam fachadas, interpretam a paisagem e coordenadas territoriais; depois, se integram como decoração zumbi dessa arquitetura. Se essa ligação entre arquitetura e corpos é tão vigorosa, não é estranho que ambos sejam concebidos e talhados a partir de materiais e técnicas similares. No fluxo entre real e fantasia que Collet-Serra entende tão bem, a origem e o destino dos corpos esculpidos é o derretimento da cera. Com um pé num surrealismo eminentemente gráfico, articulando planos que manifestam uma densidade melancólica do desmantelamento, da degeneração, a casa, QG do sonho, tem o mesmo destino - do concreto para o liquido. Revela a si própria como estrutura protética, da aparência. Falsa. Monumento à réplica e ao equívoco dos sentidos que, assim como os corpos humanos, é um artefato maleável e forjado através de um determinado procedimento técnico.

A seqüência de dilapidação da casa, um oceano de cera derretendo, escorrendo pelo chão e se revelando como cera, nos é dada pelo diretor num fluxo estético que mistura pompa e consternação, o que me parece dar forma ao tom ideal de morte de um ideal grandioso. O castelo dos últimos reinantes, os loucos megalomaníacos, que cai. Últimos reinantes cujo estatuto violenta as setas e paradigmas sociais que vigoram fora seu território, rompe com o modelo de razão e se posiciona em nome do individualismo de um ideal artístico que primaria pela eternidade, pela eterna exposição (tem portanto, de ser algo mais importante que sociedade e humanidade modernas, mas contorna os ideais mais nobres de civilização labutada sob o apuro da luz da criação sublime, bela). Temos em última instância um filme do embalsamamento - um embalsamamento de estruturas, corpos e ideais: sobretudo aqueles alinhados com um modelo de vida americano anacrônico, em um casamento perverso com um sentido de terror. O passado é fantasmicamente embalsamado, persiste, e ecoa no presente, ou antes, é penetrado pelo presente. Os dois tempos se encontram subterraneamente, nas tripas geográficas: esforço metafórico? pode ser, talvez não, mas em nenhum dos casos o brilho do filme seria menor. O sentido de sinfonia entre esses elementos é tão bem combinado com o terror mais glandular, mais instintivo, que nada destoa ou soa carregado.

Se o castelo cai e se transforma fisicamente (cera erguida para cera que se derrete e se deforma) é porque não resistiu a esse combate, ou choque simplesmente, com o continente moral que estava fora de seu território: continente cujos indivíduos são muito antes (bem-vindos) invasores (afinal terão de fazer parte do projeto) do que vítimas. Falamos dos jovens, dos quais sobram apenas os dois irmãos, que vão sendo mortos um a um. Do definhamento espetacular do projeto dos irmãos sobra a mensagem de que digno também era o esforço classicista e esteticista dos irmãos. Um esforço anacrônico, aliás como a cidade, fadado ao silêncio e às ruínas de um tempo mais praticista - de pessoas que moldam seu corpo num praticismo da reprodução. Reproduzem-se padrões gráficos, de consumo - não a pele, como fazem os irmãos em sua utopia de ligação entre o cirúrgico e o artístico na concepção de suas obras. Esses padrões são reproduzidos para que a adolescência seja reproduzida para sempre; e nem por isso impeça que fluam estímulos de reprodução propriamente dita, continuidade natural da espécie. Essa idéia de “proliferação”, casada com outra bem próxima, a de circulação, é antagônica ao ideal dos irmãos, que é o da conservação e da perpetuação.

De qualquer modo, o filme acaba resultando numa fábula, de contornos claramente bíblicos, da irmandade e da união do ventre como condição para a construção e a destruição do mundo. O mundo aqui, claro, representado pela cidade de horrores dos gêmeos, combatidos por outros gêmeos, personagens jovens. Pode ser vista também uma fábula que arranha esses limites e parte para uma reflexão da aventura literária infantil no cinema. Essa reflexão é assumida radicalmente como experimento pelo filme, ao propor para os personagens uma trajetória em que impulsos clássicos de medo e de encanto diante da fuga para um mundo encantado, presentes nessas narrativas infantis, serão hipertrofiados, se misturarão com uma história de cinema; terão a assistência da brutalidade e tirarão, assim, essas histórias, assustadoras em um sentido mais sugestivo e lúdico, da candura elegante dos livros. Nesse sentido, A Casa de Cera percorre a mesma estrada do potentíssimo filme de David Gordon Green, Contracorrente, recentemente em cartaz nas salas de São Paulo.

Uma fábula, no caso de A Casa de Cera, que é, de toda maneira, revestida pela idéia meio aguada e arcaica de que estrutura familiar tem mais consistência e sobrevive acima de qualquer outro pacto fraterno, vide serialização das mortes dos outros personagens. Há clara, às vezes pragmática demais, uma cadeia de eventos que se costura para ao final cravar em cena um embate óbvio entre essas duas forças, as duas representações familiares, simbolizadas pela identificação genética máxima: Elisha Cuthbert (a Kim Bauer de 24 Horas) e seu irmão gêmeo (interpretado por Chad Michael Murray)/ Bo e Vincent. Mas há de ser pensado. Essa forçação, aqui vista biblicamente, sob o signo da genética recebe outra coloração na leitura de Jorge Coli (Folha de S. Paulo, Caderno Mais! de 26/06/2005). Uma coloração que nos mostra que o laço consangüíneo não é outra coisa senão eco "extremo alucinado" da estrutura que rege o projeto dos irmãos. "Traços familiares idênticos", que se repetem na cara de um, na cara de outro. Assim, natural um projeto todo da réplica e do mimetismo, realizado em cera.

Embora o filme se pareça muito com Psicose, na climatização da loucura em um ambiente anestesiado e na aparência pacífico, na aposta nos contornos sinistros de figuras cadavéricas, Collet-Serra deve menos a Hitchcock do que a outro diretor. A grade estilística à qual Collet-Serra recorre está relacionada mesmo com o cinema de Wes Craven. Um cineasta, aliás, que sempre problematizou a imagem do corpo humano dentro de seus filmes, principalmente aqueles filmes sobre pequenos e ocultos sistemas em que humanos fisicamente alterados elaboravam, oprimidos ou opressores, regime comunitário alternativo, longe dos olhos estabelecidos por certos mecanismos da contemporaneidade: TV, por exemplo (estamos falando de Quadrilha de Sádicos e de As Criaturas Atrás das Paredes).

Interessante é que Collet-Serra articula, no exercício de linguagem mais primitivo da tensão e do medo, longe dessa seara da reflexão sobre a imagem e o corpo, um cinema cimentado nas funções "básicas" e mais intuitivas do cinema de Craven. Sobretudo a função da caçada humana, essa que acaba levando o diretor espanhol a emular e vislumbrar todos aqueles temos caros à mitologia rural americana dos seres macabros esquecidos pelo fluxo da máquina histórica (Deliverance, ou Amargo Pesadelo, é outro grande exemplo a ser encontrado, fora dos domínios de Craven). São dois diretores que se deslocam no mesmo registro discutindo, não raro, pontos similares: mais sensoriais, como a pele e o medo, através desse exercício de linguagem da caçada humana; ou menos, como o acervo da imagem americana como detonador de uma série de questionamentos sobre essa própria imagem e as imagens que estão sendo manejadas e expelidas pelo próprio filme (pensamos em Paris Hilton, aliás, a cada momento sendo filmada por um equipamento digital por seus amigos, e na série Pânico, com todos os seus jogos de firmação & inversão do olhar - filme que também se calca em abundante uso de dispositivos de filmagem, câmeras, dentro de cena, na engenharia de sua própria ficção).

Mas mais interessante é que, em um diálogo com um outro tipo de cinema que estava sendo feito na época em que Craven estava começando, o filme de Collet-Serra lembra muito mais Clint Eastwood. Um autor que estava contaminado por uma nova visáo - grão inseminado tanto pelo italianos contextualizados na "América" quanto por Monte Hellman - do western como gênero fantasmagórico: caravana ou paragem dos zumbis da história, e não mais dos formadores da história. Algo que casa bem com o que chamamos aqui de cinema do pesadelo folk americano, ao qual Craven pode ser considerado filiado, principalmente com seu The Hills Have Eyes, ou, aqui, Quadrilha de Sádicos. O fato é que se lembrarmos de O Estranho Sem Nome, grande filme de Clint Eastwood de 1973, o sentiremos ecoando, uivando, em meio à arquitetura, portas e becos da cidade dos irmãos bizarros em A Casa de Cera. São dois filmes que coincidem na forma como a imagem é instrumentalizada e acabam desaguando, por meio da articulação das imagens, no mesmo tema: a morte de um sistema. Dramas da cidade esvaziada, velada após um fenômeno dantesco de teor quase punitivo. O sonho da construção, no caso de A Casa de Cera, se esfacelou.

Jaume Collet-Serra, na chave do novo filme de horror adolescente slasher, uma seara industrial que olha para trás e sampleia uma velha tradição que volta a estar na moda, mas modernizada, mutante e ultra-equipada, essa do filme B interiorano, obviamente é ele mesmo um arquiteto mandado. Um projetista de "parque de diversões dos horrores" cinematográfico; esse tipo de exemplar de terror jovem, pensado, como o do de A Casa de Cera, em torno da manipulação de réplicas e do aperfeiçoamento na expressão de certos imaginários já há muito conhecidos.

É alguém contratado e adaptado em uma lógica de mercado clara, para edificar e dar traços de magia e atualidade a um parque sonhado pragmaticamente pelos gerentes dessas engrenagens, os produtores e executivos. Mas, nesse sentido, é um diretor que consegue se destacar. Tanto no domínio como encenador quanto no aproveitamento da ambigüidade de certas opções, que parecem se descolar da mise en scène para criar colapsos na percepção (exemplo - Paris Hilton) em torno do filme. Em suma, é um daqueles diretores que sugam mais desse sistema de produção do que por ele é sugado; controla a máquina, dominando seus comandos e órgãos, aproveitando o aparato que ela oferece, mais do que a máquina parece saber. Pode não ser exatamente um contrabandista, como diria Scorsese, mas há pegadas além do comum em seu filme. Em outras palavras, se mostra como uma excelente surpresa no ano de 2005.

E A Casa de Cera é uma daquelas obras que, na atual carta andróide do "bom-gosto" cinematográfico, será devastada, ou apenas ignorada. Filminho americano de adolescentes extraviolento, passará desapercebido, ou infantilizado, como diversão corriqueira ou manca. Será assim nos multiplexes populares, pelo pecado da inverossimilhança não anestesiada por um tratamento reconhecivelmente mercantilizável, pertencente a um certo maneirismo de catálogo de hoje (Sr e Sra Smith e Batman Begins, por exemplo, "embutidos" que, para além de representar a debilidade total das cartilhas industriais que os formulam, são emblemas de uma curiosa inverosimilhança "realista", calcada nesse maneirismo nosso da "padaria", do dia-a-dia das imagens 2005) ou pela, apenas aparente, repetição de um formato enrugado (jovens viajam e se ferram, muito sangue jorra até se ferrarem).

Será assim perante o público das salas mais especializadas, por, é claro, repetir clichês, não se enquadrar na chave do "gosto aprimorado para o cinema de arte ou autoral", ou faltar gritantemente com um certo estatuto bitolado em relação aos valores humanos e sociais do agora, que têm de ser refletidos na construção de imagens e de enredo. Em suma, essa confusa empolação do que é "preciso ser visto", ciclo do mal no Brasil condicionado por um estranho condomínio de fatores culturais e sociais. É preciso, entretanto, muito para não notar a ressonância social desse filme: ele penetra cortando questões das mais urgentes sobre o nosso olhar e sobre o desenvolvimento da imagem fabricada e pensada nos parques industriais do cinema.

Em suma, A Casa de Cera é um belo filme, mas vão afastar muita gente de sua órbita essas teias do bom gosto esclarecido e da "nova" iluminação estética, que tem como "plano de ação" gerar outra iluminação, político-filosófica - em síntese, novas iluminações como grife das imagens. Grife que está longe de um Manoel de Oliveira, acervista e observador frio da civilização, mas muito perto de um Lars Von Trier, por exemplo, que encarna tão bem a figura do autor superstar ativista. Engajado em questões tão vazias e em voga como é espesso o tingimento, de urgência universal e politizante, que marca seu cinema. Antes de tudo um cinema da vaidade. Aliás, a questão da vaidade (ou o seu contrário ideal, que indica muitas vezes em seu cinema um caminho para o abismo final do sacrifício) sempre pontua seus personagens e seu campo de relações com universos que constroem, controlam ou participam, da mesma forma que pontua a postura criativa desse autor. No mesmo tipo de expedição pela virgindade e selvageria do interior americano (lembramos de Dogville), A Casa de Cera também acaba pavimentando um cinema que tem a vaidade como satélite: cercando o corpo dos jovens e sobretudo a operação utópica e clássica de construção do parque de cera, capitaneada por Vincent e seu irmão gêmeo. Porém, as questões a partir daí serão outras. A Casa de Cera é cinema bem menor; seu espectro, contudo, é, sem dúvida, muito mais assombroso.

Claudio Szynkier