A idade da terra
de Glauber Rocha, 1980, Brasil

Alguns cineastas já tomaram para si a tarefa de compreender, analisar, dramatizar os processos de evolução e constituição política e/ou social de seus países ou regiões. Do bairro ao continente, podemos pensar em realizadores como Robert Guédiguian (que filma basicamente no Estaque, bairro litorâneo de Marselha), Hou Hsiao-hsien em Taiwan ao longo dos anos 80-90, ou principalmente Roberto Rossellini que numa obra magnífica acompanhou o processo de reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra Mundial. A lista de grandes diretores que tentaram traçar relações de partilha de vivência nacional/territorial não é tão extensa, mas no mundo todo só há um realizador que, mais do que analisar ou compreender, tentou purgar sistematicamente um sentimento de país através de seus filmes. E esse cineasta é Glauber Rocha. E A Idade da Terra é possivelmente sua obra-prima.

Desta vez, não estamos diante de homens-mediadores que tentam se acoplar a projetos de poder, e se vêem fadados ao fracasso e à indefinição (flertar com o deus negro, com o diabo loiro, para terminar correndo em desespero, esposa deixada caída no meio do caminho, em Deus e o Diabo na Terra do Sol; flertar com o empresariado, com a direita religiosa e com a esquerda populista em Terra em Transe). Tampouco vemos a articulação costumeira da estrutura das ficções glauberianas que trabalham a passagem do corpo indiscernível da multidão (as massas populares, esse imóvel e eterno fantasma) para o corpo individuado do ícone (uma elite intelectual ou política). De fábula sobre a tomada de consciência – o que, simplificando, era o material mesmo de Deus e o Diabo...A Idade da Terra não tem nada. Ao contrário, a adesão com o filme se dá através de outros processos que não os identificatórios (com personagens, com a história, com os mecanismos encenados). Estamos entregues não a um personagem, mas a quatro, que são o mesmo e não o são: um Cryzto índio (Jece Valadão), um Cryzto português/militar (Tarcísio Meira), um Cryzto negro (Antonio Pitanga), um Cryzto guerrilheiro (Geraldo del Rey) (uma análise magnífica dos quatro cryztos glauberianos foi feita por Luiz Alberto Rocha Melo em http://www.contracampo.com.br/58/cristoglauber.htm). Há um grande imperialista contra quem lutar, Brahms (Maurício do Valle, que anteriormente interpretara em dois filmes o personagem mais conhecido do cinema de Rocha, Antônio das Mortes, espécie de instrumento filosófico que realiza a mudança no mundo mas não a controla), mas o filme não se constrói claramente com esse objetivo narrativo.

Com A Idade da Terra, não estamos num tempo cronológico, escatológico da luta de classes, e a necessidade da revolução/redenção – difícil dissociar política e messianismo em Glauber – se dá de forma completamente diferente, inclusive em relação com seus outros filmes. Não é por uma adesão ao milenarismo revolucionário, à fundação de uma nova paz de mil anos regulada pela volta do Cristo que se dá a salvação, e tampouco ela está no horizonte, vitória ou derrota ao final. A redenção aqui é intramundana, ela não espera mais pela chegada de um ícone ao poder, pela adesão a figuras-tipos. Cryzto do Terceyro Mundo é a tentativa da encarnação de alguma vivência que esteja livre das injunções da política e do poder oficial: um amor vivo (ao contrário do amor pela figura morta e crucificada do Cristo católico) capaz de criar micro-revoluções íntimas – “um Cryzto que era venerado, vivido, revolucionado no êxtase da ressurreição” – enquanto esperamos que a Terra finalmente adquira a idade que precisa para chegar a quocientes sociais mais aceitáveis – “eu pensava que o Cryzto era um fenômeno novo, primitivo, numa civilização muito primitiva, muito nova” [...] “São quinhentos anos de civilização branca, portuguesa, européia misturada com índios e negros. E são milênios além da medida dos tempos aritméticos ou da loucura matemática, que não sabe de onde veio nem mesmo a nebulosa do caos, do nada” [...] “É muito rápida a história. Por fim, o rolo final do filme (e aqui vale lembrar que o filme originalmente foi concebido para passar sem ordem obrigatória de rolos) apresenta como último plano a imagem contraditória a grande parte de sua própria obra, um movimento inverso: Cryzto índio deixa seu corpo individuado e vai se unir à massa amorfa, abandonando sua condição de ícone, de figura de discurso, e livrando-se da Grande História para viver sua história em seu dia a dia, momento a momento. Glauber culturalista?

Mas naturalmente é uma constatação tortuosa, cheia de conflitos, tempestade e urgência, essa que vê na civilização, no mundo, na Terra a pouca idade. E, na Terra, a distinção entre um primeiro mundo e um terceiro, que é espoliado pelo primeiro. Estamos no Brasil, um país de 500 anos que se encontra na categoria dos explorados. É essa a especificidade da purgação em A Idade da Terra, uma violência incontida que sai de um sentimento de piedade pelo próximo explorado, faminto, miserável, e se transforma num choro de sangue que é de uma intensidade só ultrapassada pela evidente beleza monumental – que, na arte do século XX, só é igualada à violência de John Coltrane com seu saxofone purgando o destino de seu povo, da escravidão ao preconceito. Grandiosidade, dissonância, irracionalismo, repetição, assimetria, desmedida, confusão: estas são as armas para a construção de um dos maiores monumentos – porque é disso que se trata, em fina sintonia com o muralismo, com afrescos e estátuas gigantescas e suas inscrições profundas na história, numa idéia de eternidade e relevância pública – da cultura mundial no século passado. Um monumento ao amor. E, para retomar um tema caro a Coltrane, uma ascensão. Mas uma ascensão dentro do mundo, e para ele.

Ruy Gardnier