Stanley Kubrick
pretendia levar Napoleão Bonaparte às telas. Pesquisou
em mais de cem livros, de biografias históricas a tratados
sobre a geologia européia, a fim de transformar a vida
do imperador francês no épico definitivo do cinema.
Filmagens previstas para logo depois de 2001: Uma Odisséia no Espaço, o projeto,
no entanto, naufragou, em parte pelos altíssimos custos
de produção (que envolvia utilizar parte do exército
romeno na figuração das seqüências de batalha), em parte
pelo fracasso comercial de Waterloo, o qual fez com que os investidores retirassem o financiamento
ao filme. Embora tenha reaproveitado os estudos feitos
para Napoleão na obra-prima Barry
Lyndon – sobretudo quanto ao uso exclusivo de luz
de velas e de luz natural, às experiências com o zoom
in e o zoom out, aos enquadramentos e às composições
retirados das pinturas do século XVIII e ao ritmo lento
orquestrado com a música –, Kubrick não pôde responder
à questão que o afligia: por que o maior estrategista
militar e gênio político do Ocidente acabou derrotado
de maneira tão humilhante, exilado na insignificante
ilha de Santa Helena e, finalmente, morto ao ser envenenado
com arsênico?
É inútil conjecturar
como seria a versão kubrickiana para a saga napoleônica,
já que o diretor não se cansava de reescrever seus roteiros
(e o tratamento “final” de Napoleão
está disponível na Internet) durante as filmagens. Contudo,
nos treze longas-metragens que realizou, verifica-se
o fascínio de cineasta pelos tormentos da mente, que
tanto engendram a (auto) destruição pessoal, quanto
propiciam a desestruturação completa de todos os códigos,
por essência racionais, que organizam a sociedade, ou
seja, que balizam e permitem a convivência entre os
homens. Apesar de já presente, por exemplo, em O Grande Golpe – o hiper-planejado assalto
ao jóquei que fracassa devido à não prevista submissão
afetiva de um dos participantes à esposa infiel e gananciosa
–, o cinema cerebral de Kubrick (não como sinônimo de
frieza ou de falta de emoção, e sim enquanto obra preocupada
em dissecar o impacto do controle e do ordenamento social
a partir da Razão e da Lei, por suas fadadas à ruína
pela incapacidade sistêmica de reprimir as manifestações
imprevisíveis das pulsões animais que ocorrem nas infinitas
reentrâncias do cérebro) apenas se consolida com Lolita, primeiro filme em que, trabalhando em grandes estúdios (MGM),
o cineasta teve poder total sobre a produção, graças
as sucesso de público e de crítica de Spartacus
e à mudança para a Inglaterra.
Eyes
Wide Shut, de olhos arregaladamente fechados: já
no título do derradeiro filme de Kubrick, a noção de
que modelos e instituições aceitos e estabelecidos cultural
e socialmente – o casamento, a fidelidade conjugal,
o conceito de amor edificado pelas revoluções burguesas
do século XIX, o binômio exterioridade / intimidade
(o trabalho e a casa) – não somente mediam a relação
dos homens entre si e deles com o real, como também
criam os relacionamentos que a princípio regulariam
e substituem a realidade que, de fato, não existe. Não
seria a Nova York onírica, onde Bill Hartford vaga pela
noite, o deserto do real kubrickiano, e De Olhos Bem Fechados a versão do cineasta
para Matrix,
lançado no mesmo ano? (voltando a 1964, a descrição
que o ensandecido Dr. Strangelove, em Doutor Fantástico, dá sobre a “máquina
do juízo final”, é quase idêntica à que Morpheus oferece
a Neo acerca do programa de computador que os domina,
na trilogia dos irmão Wachowski). Assim, o espaço é
preponderante para Kubrick, uma vez que lá acontece
a quebra do código de constituição / falsificação do
real, que deságua no caos, na loucura e na destruição:
a sala de guerra, a base aérea e o B-52 em Doutor Fantástico; as naves espaciais rodopiantes (heranças do carrossel
de La Ronde e
do picadeiro de Lola
Montès, ambos de Max Ophüls, ídolo de Kubrick) controladas
por onipresentes computadores em 2001: Uma Odisséia no Espaço; a cidade
kitsch, pós-apocalíptica e ultra-violenta em Laranja Mecânica; os castelos nos quais os personagens, na composição
mesma dos quadros, encontram-se presos ao equilíbrio
buscado pela pintura setescentista em Barry
Lyndon; os corredores e jardins labirínticos do
hotel Overlook, perfeitas encarnações do cérebro de
Jack Torrance em O
Iluminado; a ilha de treinamento militar em que
o sargento Hartman insulta e humilha os recrutas em
Nascido para Matar.
Em Lolita,
Kubrick retrata o dia-a-dia dos subúrbios norte-americanos,
através das cidadezinhas de Ramsdale e de Beardsley
(de certa forma, retomando o Hitchcock de A Sombra de Uma Dúvida). Posto que o diretor
sempre lidou com os gêneros consagrados e codificados
pelo cinema clássico-narrativo hollywoodiano – a ficção
científica (2001: Uma Odisséia no Espaço), o filme noir (O Grande Golpe), o filme de guerra (Glória Feita de Sangue e Nascido
para Matar), o terror (O
Iluminado), o épico (Spartacus),
o filme histórico (Barry
Lyndon) –, é próprio dizer que ele transforma a
adaptação do romance de Nabokov (roteirizado pelo autor,
mas reescrito pelo cineasta) em uma comédia de costumes,
na qual está em jogo a ironia à pseudo-cultura do americano
médio, encarnado por Charlotte, com seu gosto duvidoso
em consumir tudo o que vem da Europa (a paixão por Humbert,
as reproduções de pintores famosos nas paredes do quarto,
as frases entremeadas com francês) ou de se manter ocupada
com a “arte” (a presidência no clube de literatura,
o envolvimento sexual com Clare Quilty, medíocre escritor
para televisão), além de farpas contra a aparente normalidade
daquele meio urbano – os empregados, todos negros; a
religiosidade doentia de Charlotte e o moralismo hipócrita
da vizinha que, recepcionando um padre, questiona Humbert
sobre seu relacionamento com a enteada; o desdém de
Lolita pelos “filmes estrangeiros” e por Edgar Allan
Poe e, em contrapartida, sua paixão pelas histórias
em quadrinhos.
Através de longos
planos-seqüências e de travellings invasivos, Kubrick
expõe, com o humor impiedoso que o caracteriza, o ridículo
das casas, dos cômodos e dos objetos, das roupas e dos
penteados, das festas, dos movimentos e dos comportamentos
dos personagens. Como não desmentes as cenas em que
Humbert arma o catre no quarto de hotel, ou em que Quilty
fala incessantemente com prosódia muito particular,
Lolita deve tributo às comédias alucinadas (de Mack
Sennet a desenhos do Pica-Pau), ao estúdio Ealing e
ao absurdo do normal alcançado por Jacques Tati em Meu Tio. Porém, o apelo cômico principal do filme reside nas piadas
eróticas de duplo sentido, nas insinuações maldosas
– por exemplo, a impotência metaforizada por intermédio
do macarrão mole, a foto de Lolita que serve de estimulante
sexual ao professor, as brincadeiras nada inocentes
da ninfeta no acampamento de férias, fazer a barba como
sentido figurativo para ejaculação, o casamento aberto
dos Farlow, as tripudiadas em cima da psicanálise (Doutor
Zempf, outra criação brilhante de Peter Sellers) –,
uma vez que, no cinema kubrickiano, a sexualidade se
revela a força desestruturante que convulsiona o espaço
e o lança em meio ao caos, seja a traição imaginada
de Alice com o marinheiro em De
Olhos Bem Fechados, seja a obsessão do general Jack
Rieper com o suposto complô soviético para contaminar
os fluidos corporais norte-americanos em Doutor Fantástico. Trata-se,
em Lolita,
da paixão e do desespero pela ninfeta-título que desequilibram
o pacato Humbert Humbert: da mesma forma que Jack Torrance
em O Iluminado,
Redmond Barry em Barry
Lyndon, Gomer Pyle em Nascido para Matar, Bill Hartford em De Olhos Bem Fechados ou HAL 9000 em 2001: Uma Odisséia no Espaço, o personagem
interpretado por James Mason (ator favorito de Kubrick,
junto com Sellers e com Jack Nicholson) abdica progressivamente
de qualquer traço de racionalidade para mergulhar na
violência dos próprios processos cerebrais, incompreensíveis,
tumultuados e descontrolados, que terminam por destruí-lo
a todos que o cercam – tanto que Humbert e Quilty morrem,
enquanto Lolita se muda para o Alasca, terra de ninguém,
para recomeçar do zero.
James
Mason, que havia interpretado personagens destrutivos
antes (o ator alcoólatra em Nasce
Uma Estrela, de George Cukor, e o pai de família
viciado em cortisona em Delírio de Loucura, de Nicholas Ray), encaixou-se
com perfeição ao papel de Humbert Humbert. . Poderia,
quem sabe, ter feito Napoleão, que, apesar da genialidade,
sucumbe diante das próprias fraquezas: o tão estimado
projeto de Stanley Kubrick, enfim, já estava esboçado
desde Lolita.
Paulo Ricardo de Almeida
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