O
Gosto da Cerveja
A aparente fixidez da rotina transpõe-se em cada
quadro de Ozu. O fluxo das estações (também
elas de certa forma rotineiras) atravessa perpendicularmente
estes quadros, trazendo pequenas variações
para os homens que os habitam. O olhar falsamente "congelado"
da decupagem nos deixa com as sutis mudanças que
podem se dar nos rostos e vozes humanos, a despeito da
circularidade dos seus atos. O mundo existe então
apenas visto por uma lente 50mm. Planificado, ele é
uma superfície quase sem volume, na qual toda a
tridimensionalidade está achatada num mesmo plano,
composto basicamente de três camadas e cuja profundidade
de campo é quase nula. Num primeiro plano: objetos
definidos, mas fora de foco, em segundo plano, personagens
em foco e em terceiro plano, o cenário fora de
foco. Plano e contraplano dispõem-se quase sempre
em 180º e sua absoluta frontalidade contempla a profundidade
em movimentos laterais. Ao deslizar sobre esta superfície,
os personagens revelam um mundo bidimensional, que se
desdobra em labirintos espaciais sem relevo. A espessura
que ganham então estes planos nos atrai a atenção
para o impulso de perscrutá-la. Os leves meneios
de cabeça ganham a importância de grandes
feitos, os pequenos gestos do cotidiano marcam uma relação
intensa entre homens, objetos e espaço, que dividem
o mesmo plano imagético e uma importância
existencial mútua.
Nestas planícies, as pessoas são as responsáveis
por uma ligeira circulação, mas, no entanto,
de tão ligadas ao mundo material à sua volta,
movem-se muito sutilmente, mais lentamente que o tempo
e, freqüentemente, só percebem as determinações
deste em descompasso com ele. Mas mesmo assim lhe são
simpáticos. Contemplam a velhice com algum pesar
e um sorriso. Aguardam a solidão inevitável
com bastante receio e a voz mansa. Tentam cumprir ou escapar
de suas obrigações com uma gentil resignação,
refletida no tom monocórdio das falas (algo bressoniano)
e na repetição inócua de palavras
e interjeições. Se Michiko tivesse comunicado
que gostava de Miura ou se seu irmão tivesse percebido
antes e tomado logo a iniciativa de procurá-lo,
Miura não teria se comprometido com a bilheteira
do ônibus no qual viajava todo dia. Mas não
é possível mudar aquilo que passou. As pessoas
que se vão não podemos trazer de volta,
assim como o resultado da guerra não é reversível.
Porque o mundo é tal como ele é. Físico,
material e imóvel. Embalado pelo tempo em constante
e incessante movimento. Tempo este que a câmera
tenta fixar, em meio ao paradoxo de também registrá-lo
na sua duração, no seu passamento. O quadro
fixo vibra então com o movimento imperceptível
do ar e da luz, que os ponteiros do relógio tentam
quantificar. É sempre preciso, portanto, dar corda
no relógio, tentar evitar ao máximo que
o tempo escape, que ele passe por nós rápido
demais.
Um pouco como Manoel de Oliveira, Ozu tenta captar um
tempo com ares de eternidade. No entanto, enquanto o português
busca um tempo eterno que guardariam as coisas físicas,
Ozu busca o tempo fugidio que marca os acontecimentos
de um mundo de compasso cotidiano. Para ele, o tempo de
um quadro vazio é o tempo do ar que circula, ou
dos objetos que envelhecem um pouco mais. É a duração
de algo que se dá nos personagens e que não
podemos ver (porque nem eles mesmos podem ver). Já
para Oliveira, este tempo é o tempo imemorial do
que se deu naquele espaço e que está ali,
embora não possamos ver. Sua câmera detém-se
então na tentativa de captar esse invisível,
enquanto Ozu tenta captar o presente que se dá,
o tempo que corre junto com o rolo de filme na câmera.
O tempo da decisão de Michiko pelo casamento e
o da solidão que vem chegando ao pai. Do gosto
e do efeito da cerveja que embala o medo do inevitável:
a separação dos entes queridos pelo progredir
da vida. Das pequenas coisas que passam, dos momentos
que vêm e vão.
A narrativa, disposta em acontecimentos razoavelmente
desconectados - estruturados em planos que constróem
um espaço-tempo fragmentado, não permitindo
nossa perfeita orientação em sua justaposição,
embora compartilhem de uma continuidade espaço-temporal
-, é extremamente frágil e existe apenas
como esqueleto para o desfile de uma série de micro-narrativas,
que se revelam o coração do filme. A busca
de Hirayama por um marido para a filha Michiko, a princípio
impulsionada pelas pessoas à sua volta e não
por sua própria determinação, vai
desvelando um mosaico de relações, envolvidas
por expectativas, frustrações, tristezas,
alegrias... Através de observações
que partem de seus diversos encontros em bares - especialmente
a partir de uma reunião que promove o reencontro
com seu antigo professor de colegial 40 anos depois, no
qual acaba enxergando um possível futuro para si
mesmo -, ele parece despertar aos poucos, como se, subitamente,
quem sabe ajudado pelo efeito do álcool sorvido
em companhia dos amigos, começasse a enxergar todo
o mundo que sempre esteve ali. O estranho clima da casa
de Koichi, seu filho mais velho, na sua relação
de quase disputa infantil com a mulher, a vida do filho
mais novo, Kazuo, com seus flertes e amizades, a secretária
que casa, a atendente do bar, que se parece com a falecida
esposa, a filha que já passa da idade de casar
e que dedica-se a cuidar dele e do irmão mais novo,
ocupando um lugar que talvez não seja o seu. Um
pequeno deslocamento da sua rotina provocou a percepção
repentina do efeito do tempo à sua volta. A descoberta
de quem se tornou seu professor 40 anos depois, assim
como o reencontro de um antigo amigo e os alertas de seus
colegas sobre arranjar o casamento da filha, sensibilizaram
Hirayama para agir antes que o tempo passasse por ele.
O que, no entanto, não impediu que este ultrapassasse
a vontade de Michiko de ficar com Miura, dado que sua
decisão de acatar a vontade do pai deu-se tarde
demais. Aguardando a solidão nos cômodos
da casa que se esvaziaram, porém, Hirayama está
contente, num reflexo da alegria do seu professor, que,
totalmente bêbado, só festejava a companhia
dos ex-alunos e os momentos felizes por eles compartilhados
no bar, não obstante sua difícil condição
financeira e idade avançada. O gosto de viver cada
momento supera então a percepção
talvez melancólica do todo de uma vida. Ficamos
com o gosto do instante.
Tatiana Monassa
Sinopse
Último filme de Ozu. Quando o viúvo Shuhei
Hirayama encontra com seu velho professor Sakuma, fica
sabendo que sua filha Tomoko ainda não se casou
porque teve que ficar cuidando do pai. Com medo de que
Michiko, sua filha de 24 anos, acabe com o mesmo destino,
ele começa a procurar um bom homem para se casar
com ela.
Sanma no aji – Japão, 1962, cor, 112 min
Direção: Yasujiro Ozu
Roteiro: Kôgo Noda e Yasujiro Ozu
Fotografia: Yuuharu Atsuta
Montagem: Yoshiyasu Hamamura
Música Orginal: Kojun Saitô
Produção: Shizuo Yamanouchi
Elenco: Chishu Ryu, Shima Iwashita, Shinichiro Mikami,
Keiji Sada, Mariko Okada, Nobuo Nakamura
Filmografia de Yasujiro
Ozu (1903- 1963)
1927 Zange no Yaiba
1928 Wakodo no Yume (Sonhos de Juventude)
Nyobo Funshitsu
Kabocha
Hikkoshi Fufu
Nikutaibi
1929 Takara no Yama (Montanha do Tesouro)
Wakaki hi (Dias de Juventude)
Wasei Kenka Tomodachi (Amigos de Luta)
Daigaku wa Deta Keredo (Era Diplomado mas...)
Kaishain Seikatsu (A Vida de um Empregado)
Tokkan Lozo (Um Rapaz Honesto)
1930 Kekkon Gaku Nyumon ( Introdução ao
Casamento)
Hogaraka ni Ayume (Marchai Alegremente)
Rakudai wa Shita Keredo
Sono yo Tsuma (A Esposa da Noite)
Erogami no Onryo (Eros Vingativo)
Ashi ni Sawatta Koun (Chance Perdida)
Ojosan ( Senhorita)
1931 Shukujo to Hige (A Mulher e os Favoritos)
Bijin Aishu (As Infelicidades da Beleza)
Tokyo no Gassho
1932 Haru wa Gofujin Kara (A Primavera vem das Mulheres)
Umarete wa Mita Keredo (Meninos de Tóquio)
Seishun no Yume Imaizuko (Onde estão os Sonhos
da Juventude)
Mata Au Hi Made (Até Nosso Próximo Encontro)
1933 Tokyo no Onna (Mulher de Tóquio)
Hijosen no Onna (Mulheres em Luta)
Dekigoroko (Coração Caprichoso)
1934 Haha wo Kowazuya (Uma Mãe deve ser Amada)
Tokyo yoi Toko [inacabado]
Tokyo no Yado (Um Hotel em Tóquio)
1936 Daigaku Yoi Toko (A Escola é um Lugar Agradável)
Hitori Musuko (Filho Único)
1937 Shujuko wa Nani o Wasuraetaka (O Que esta Mulher
Esqueceu?)
1941 Todake no Kyodai (Os Irmãos e Irmãs
Toda)
1942 Chichi Ariki (Ele é um Pai)
1947 Nagaya Shinshiroku (Discurso de um Proprietário)
1948 Kaze no Jaka no Mendori (Uma Galinha no Vento)
1949 Pai e Filha (Banshun)
1950 Munakata Shimai (As Irmãs Munekata)
1951 Bakushu (Também Fomos Felizes)
1952 Ochazuke no Aiji (O Gosto do Arroz no Chá
Verde)
1953 Tokyo Monogatari (Contos de Tóquio)
1956 Soshun (Primavera Precoce)
1957 Tokyo Boshoku (Crepúsculo em Tóquio)
1958 Higanbana (Flor Higanbana)
1959 Ohayo (Bom-Dia)
Ukigusa (Ervas Flutuantes)
1960 Dia de Outono (Akibiyori)
1961 Kohayagawe Ke no Aki (Fim de Verão)
1962 Sanma no aji (A Rotina Tem Seu Encanto) |