A rotina tem seu encanto
de Yasujiro Ozu, Sanma no aji, 1962, Japão
O Gosto da Cerveja

A aparente fixidez da rotina transpõe-se em cada quadro de Ozu. O fluxo das estações (também elas de certa forma rotineiras) atravessa perpendicularmente estes quadros, trazendo pequenas variações para os homens que os habitam. O olhar falsamente "congelado" da decupagem nos deixa com as sutis mudanças que podem se dar nos rostos e vozes humanos, a despeito da circularidade dos seus atos. O mundo existe então apenas visto por uma lente 50mm. Planificado, ele é uma superfície quase sem volume, na qual toda a tridimensionalidade está achatada num mesmo plano, composto basicamente de três camadas e cuja profundidade de campo é quase nula. Num primeiro plano: objetos definidos, mas fora de foco, em segundo plano, personagens em foco e em terceiro plano, o cenário fora de foco. Plano e contraplano dispõem-se quase sempre em 180º e sua absoluta frontalidade contempla a profundidade em movimentos laterais. Ao deslizar sobre esta superfície, os personagens revelam um mundo bidimensional, que se desdobra em labirintos espaciais sem relevo. A espessura que ganham então estes planos nos atrai a atenção para o impulso de perscrutá-la. Os leves meneios de cabeça ganham a importância de grandes feitos, os pequenos gestos do cotidiano marcam uma relação intensa entre homens, objetos e espaço, que dividem o mesmo plano imagético e uma importância existencial mútua.

Nestas planícies, as pessoas são as responsáveis por uma ligeira circulação, mas, no entanto, de tão ligadas ao mundo material à sua volta, movem-se muito sutilmente, mais lentamente que o tempo e, freqüentemente, só percebem as determinações deste em descompasso com ele. Mas mesmo assim lhe são simpáticos. Contemplam a velhice com algum pesar e um sorriso. Aguardam a solidão inevitável com bastante receio e a voz mansa. Tentam cumprir ou escapar de suas obrigações com uma gentil resignação, refletida no tom monocórdio das falas (algo bressoniano) e na repetição inócua de palavras e interjeições. Se Michiko tivesse comunicado que gostava de Miura ou se seu irmão tivesse percebido antes e tomado logo a iniciativa de procurá-lo, Miura não teria se comprometido com a bilheteira do ônibus no qual viajava todo dia. Mas não é possível mudar aquilo que passou. As pessoas que se vão não podemos trazer de volta, assim como o resultado da guerra não é reversível. Porque o mundo é tal como ele é. Físico, material e imóvel. Embalado pelo tempo em constante e incessante movimento. Tempo este que a câmera tenta fixar, em meio ao paradoxo de também registrá-lo na sua duração, no seu passamento. O quadro fixo vibra então com o movimento imperceptível do ar e da luz, que os ponteiros do relógio tentam quantificar. É sempre preciso, portanto, dar corda no relógio, tentar evitar ao máximo que o tempo escape, que ele passe por nós rápido demais.

Um pouco como Manoel de Oliveira, Ozu tenta captar um tempo com ares de eternidade. No entanto, enquanto o português busca um tempo eterno que guardariam as coisas físicas, Ozu busca o tempo fugidio que marca os acontecimentos de um mundo de compasso cotidiano. Para ele, o tempo de um quadro vazio é o tempo do ar que circula, ou dos objetos que envelhecem um pouco mais. É a duração de algo que se dá nos personagens e que não podemos ver (porque nem eles mesmos podem ver). Já para Oliveira, este tempo é o tempo imemorial do que se deu naquele espaço e que está ali, embora não possamos ver. Sua câmera detém-se então na tentativa de captar esse invisível, enquanto Ozu tenta captar o presente que se dá, o tempo que corre junto com o rolo de filme na câmera. O tempo da decisão de Michiko pelo casamento e o da solidão que vem chegando ao pai. Do gosto e do efeito da cerveja que embala o medo do inevitável: a separação dos entes queridos pelo progredir da vida. Das pequenas coisas que passam, dos momentos que vêm e vão.

A narrativa, disposta em acontecimentos razoavelmente desconectados - estruturados em planos que constróem um espaço-tempo fragmentado, não permitindo nossa perfeita orientação em sua justaposição, embora compartilhem de uma continuidade espaço-temporal -, é extremamente frágil e existe apenas como esqueleto para o desfile de uma série de micro-narrativas, que se revelam o coração do filme. A busca de Hirayama por um marido para a filha Michiko, a princípio impulsionada pelas pessoas à sua volta e não por sua própria determinação, vai desvelando um mosaico de relações, envolvidas por expectativas, frustrações, tristezas, alegrias... Através de observações que partem de seus diversos encontros em bares - especialmente a partir de uma reunião que promove o reencontro com seu antigo professor de colegial 40 anos depois, no qual acaba enxergando um possível futuro para si mesmo -, ele parece despertar aos poucos, como se, subitamente, quem sabe ajudado pelo efeito do álcool sorvido em companhia dos amigos, começasse a enxergar todo o mundo que sempre esteve ali. O estranho clima da casa de Koichi, seu filho mais velho, na sua relação de quase disputa infantil com a mulher, a vida do filho mais novo, Kazuo, com seus flertes e amizades, a secretária que casa, a atendente do bar, que se parece com a falecida esposa, a filha que já passa da idade de casar e que dedica-se a cuidar dele e do irmão mais novo, ocupando um lugar que talvez não seja o seu. Um pequeno deslocamento da sua rotina provocou a percepção repentina do efeito do tempo à sua volta. A descoberta de quem se tornou seu professor 40 anos depois, assim como o reencontro de um antigo amigo e os alertas de seus colegas sobre arranjar o casamento da filha, sensibilizaram Hirayama para agir antes que o tempo passasse por ele. O que, no entanto, não impediu que este ultrapassasse a vontade de Michiko de ficar com Miura, dado que sua decisão de acatar a vontade do pai deu-se tarde demais. Aguardando a solidão nos cômodos da casa que se esvaziaram, porém, Hirayama está contente, num reflexo da alegria do seu professor, que, totalmente bêbado, só festejava a companhia dos ex-alunos e os momentos felizes por eles compartilhados no bar, não obstante sua difícil condição financeira e idade avançada. O gosto de viver cada momento supera então a percepção talvez melancólica do todo de uma vida. Ficamos com o gosto do instante.

Tatiana Monassa



Sinopse

Último filme de Ozu. Quando o viúvo Shuhei Hirayama encontra com seu velho professor Sakuma, fica sabendo que sua filha Tomoko ainda não se casou porque teve que ficar cuidando do pai. Com medo de que Michiko, sua filha de 24 anos, acabe com o mesmo destino, ele começa a procurar um bom homem para se casar com ela.

Sanma no aji – Japão, 1962, cor, 112 min
Direção: Yasujiro Ozu
Roteiro: Kôgo Noda e Yasujiro Ozu
Fotografia: Yuuharu Atsuta
Montagem: Yoshiyasu Hamamura
Música Orginal: Kojun Saitô
Produção: Shizuo Yamanouchi
Elenco: Chishu Ryu, Shima Iwashita, Shinichiro Mikami, Keiji Sada, Mariko Okada, Nobuo Nakamura

Filmografia de Yasujiro Ozu (1903- 1963)

1927 Zange no Yaiba
1928 Wakodo no Yume (Sonhos de Juventude)
Nyobo Funshitsu
Kabocha
Hikkoshi Fufu
Nikutaibi
1929 Takara no Yama (Montanha do Tesouro)
Wakaki hi (Dias de Juventude)
Wasei Kenka Tomodachi (Amigos de Luta)
Daigaku wa Deta Keredo (Era Diplomado mas...)
Kaishain Seikatsu (A Vida de um Empregado)
Tokkan Lozo (Um Rapaz Honesto)
1930 Kekkon Gaku Nyumon ( Introdução ao Casamento)
Hogaraka ni Ayume (Marchai Alegremente)
Rakudai wa Shita Keredo
Sono yo Tsuma (A Esposa da Noite)
Erogami no Onryo (Eros Vingativo)
Ashi ni Sawatta Koun (Chance Perdida)
Ojosan ( Senhorita)
1931 Shukujo to Hige (A Mulher e os Favoritos)
Bijin Aishu (As Infelicidades da Beleza)
Tokyo no Gassho
1932 Haru wa Gofujin Kara (A Primavera vem das Mulheres)
Umarete wa Mita Keredo (Meninos de Tóquio)
Seishun no Yume Imaizuko (Onde estão os Sonhos da Juventude)
Mata Au Hi Made (Até Nosso Próximo Encontro)
1933 Tokyo no Onna (Mulher de Tóquio)
Hijosen no Onna (Mulheres em Luta)
Dekigoroko (Coração Caprichoso)
1934 Haha wo Kowazuya (Uma Mãe deve ser Amada)
Tokyo yoi Toko [inacabado]
Tokyo no Yado (Um Hotel em Tóquio)
1936 Daigaku Yoi Toko (A Escola é um Lugar Agradável)
Hitori Musuko (Filho Único)
1937 Shujuko wa Nani o Wasuraetaka (O Que esta Mulher Esqueceu?)
1941 Todake no Kyodai (Os Irmãos e Irmãs Toda)
1942 Chichi Ariki (Ele é um Pai)
1947 Nagaya Shinshiroku (Discurso de um Proprietário)
1948 Kaze no Jaka no Mendori (Uma Galinha no Vento)
1949 Pai e Filha (Banshun)
1950 Munakata Shimai (As Irmãs Munekata)
1951 Bakushu (Também Fomos Felizes)
1952 Ochazuke no Aiji (O Gosto do Arroz no Chá Verde)
1953 Tokyo Monogatari (Contos de Tóquio)
1956 Soshun (Primavera Precoce)
1957 Tokyo Boshoku (Crepúsculo em Tóquio)
1958 Higanbana (Flor Higanbana)
1959 Ohayo (Bom-Dia)
Ukigusa (Ervas Flutuantes)
1960 Dia de Outono (Akibiyori)
1961 Kohayagawe Ke no Aki (Fim de Verão)
1962 Sanma no aji (A Rotina Tem Seu Encanto)