O diabo no corpo
de Marco Bellochio, Il Diavolo in Corpo, 1986, Itália

Deus, o diabo e os corpos

Ao comentar um texto de Dante em sua prova final, Andrea diz que “a contingência é o curso dos fatos contingentes próprios do meio material e terrestre” e que Dante discursa ali sobre o livre arbítrio. Talvez possamos ver então nesta fala o percurso da maioria dos personagens de Bellocchio. Imersos em contingências históricas e pessoais que se fazem ver de forma muito presente em sua realidade palpável, eles procuram o caminho possível que os desvencilhará do que os oprime, do que se interpõe entre eles e sua vontade. É como se eles estivessem o tempo todo estranhando este mundo em que estão inseridos, tentando se adaptar a todos estes regulamentos que existem quase que autonomamente, perguntando-se se podem quiçá ser mudados. Há vida neles. E esta vida esbarra o tempo todo em instâncias como a família, a religião e a política, que a impedem de seguir seus desígnios, de suprir seus desejos.

Assim como Giulia quer ver o noivo libertado, ela não suporta ou não compreende muito bem a situação em que ambos se encontram, quer estar com alguém, quer se apaixonar e amar loucamente. Já Andrea não consegue ser satisfeito pela escola e seus ensinamentos de filosofia acadêmica. Precisa olhar pela janela. Porque ele não tem tempo. Porque há algo mais urgente que demanda sua atenção. Um afeto algo avassalador, muito diferente daquele que possivelmente Pulcini, noivo de Giulia, poderia cultivar. Pulcini faz o elogio da mediocridade. Diz ter descoberto o orgulho de ser medíocre. De alimentar uma vida sem saturação, sem altos tons, sem paixões e sem lutas. Uma vida entregue refém de tudo que a deseja governar.

Já Giulia não se contém dentro de si. Ela não tem muitas medidas, parece não reconhecer os padrões à sua volta. Tem medo de enlouquecer, de perder tão seriamente os parâmetros a ponto de não mais poder viver em sociedade. Tem medo de ficar sozinha e vê na organização das coisas uma imensa propensão à solidão. A frieza de um tribunal ou de um divã para ela não são suportáveis. Ela precisa do calor de um corpo ao lado do seu. E é seu corpo incandescente que a faz endiabrada, violenta, perigosa. Sua paixão por Andrea a mobiliza a tal ponto que ela se vê prestes a enlouquecer novamente. Sente necessidade de voltar para Pulcini. Para buscar aquela morna mediocridade. Não pode viver até o fim se quiser manter a sanidade. Mas sabe também que talvez não possa viver de outro jeito. As palavras do psiquiatra já lhe são inúteis. Espera quem sabe conseguir encontrar paz no amor de Andrea, o rapaz apaixonado que parece ele sim saber de medidas. Por isso chora ao ouvi-lo responder às questões de seu exame final, falando do livre arbítrio e do embate entre a crença nas leis terrenas e a crença nos desígnios de Deus. Se somos nós os regentes de nossas próprias vidas, se, para além das contingências que nos assolam, somos capazes de ditar nossas existências e nossa vida social, então decerto há uma felicidade possível! Colocação em suspenso, por sobre as lágrimas de Giulia.

E por sobre as de Chiara, personagem de Bom Dia, Noite. Fosse ela capaz de suplantar o mundo por seus devaneios e sua sensibilidade, talvez se tranqüilizasse. Talvez fosse mais amena e conseguisse dormir à noite, se visualizasse um mundo onde os homens pudessem decidir o que fazer de acordo com seu bom senso e com o seu coração. Onde a morte – tanto aquela promovida aos poucos pelas bem-assentadas instituições, tanto aquela executada em golpes certeiros por assassinos – não fosse palavra de ordem e os homens soubessem falar apaixonadamente dos que os aflige. Onde todos fossem sensíveis o suficiente para perceberem o quanto a vida em seu entorno é oprimida.

E se em grande parte para Bellocchio trata-se de falar de entorno, especialmente sócio-político, é de ambientes que fala sua câmera. Afeita a uma cuidadosa descrição dos espaços habitados pelos personagens, ela nos faz testemunhar de sua condição de vivência, experimentar sua ambientação, para então situá-los no mundo. Conhecemos bem os apartamentos de Diabo no Corpo, A Hora da Religião e Bom Dia, Noite, por exemplo. Somos capazes de nos guiar dentro deles, de reconhecer as luzes, de saber abrir portas e janelas. E por isso somos capazes de estabelecer com os personagens uma relação de intimidade, a ponto de compreendermos os dilemas que estes atravessam. Dilemas pontuados por notas altas e dissonantes. Notas musicais que muitas vezes marcam um “sair do mundo”, um sonho de olhos abertos ou fechados, que insiste em fazer do que está diante de si uma versão própria, em afirmar o livre arbítrio de cada homem como potencializador de um outro mundo, mesmo que não para além de si mesmo...

Marcante, aliás, o trabalho entre som e imagem estabelecido por Bellocchio. Elaborados de forma quase autônoma, eles estabelecem cada um sua própria rede de significações, estejam em sincronia ou não. Cortes diferenciados para cada um deles originam, dentro da mesma cena, superposições de sons e imagens não-sincrônicos, criando outras percepções tanto das imagens quanto dos sons. Como ocorre em na fala do padre para a louca no início de Diabo no Corpo, na fala do juiz no tribunal por sobre trocas de olhares entre Giulia e Pulcini e entre Giulia e Andrea, e  na cena final em que Andrea prossegue seu exame final em off, sobre a imagem de Giulia chorando. Os discursos sobre o mundo ganham seu verdadeiro status de discurso, como construções por sobre a materialidade da vida. Que é como é, a despeito do que se diga ou se projete. Porque as palavras podem ter efeito nas pessoas, mas as pessoas têm muito mais efeito nas palavras.

Tatiana Monassa