CASA DE AREIA
Andrucha Waddington, Brasil, 2005

Ao longo do novo filme de Andrucha Waddington, vez ou outra vem a impressão de se estar na sala de cinema para ver e ouvir o vento. Por mais que as imagens transmitam uma grande segurança em relação ao que está sendo construído no filme, é possível enxergar um desejo mudo em Casa de Areia: ter uma narrativa de fundo sustentando um belíssimo documentário sobre o vento que sopra nos lençóis maranhenses. Há um vigoroso estudo de paisagem e de ritmo que pouco a pouco se comprova inseparável da trama calcada no tempo e no corpo. O fato é que Casa de Areia, já nos seus primeiros minutos, oferece menos uma estrutura psiconarrativa imediatamente mapeável do que uma experiência que se funda na desordem empírica dos acontecimentos, com a sensibilidade espacial e a narratividade dos olhares adquirindo uma potência sobrecomum.

Assim como em Wong Kar-wai (Ashes of Time, Amor à Flor da Pele), aqui uma temática do tempo e da passagem constitui o arcabouço de um cinema das elipses. Toda passagem se deixará então produzir sob a forma da dissimulação, da prestidigitação. A montagem em cortes secos apenas exacerba no filme a indeterminabilidade – ao menos num primeiro momento – do tempo transcorrido entre um plano e outro, essa cronologia fugidia estando na base de sua composição elíptica. Mas em Casa de Areia não se experimenta a vertigem de alguns filmes de Wong (Days of Being Wild, Felizes Juntos), pois tanto a noção de movimento está no caminhar vagaroso que as areias das dunas impõem quanto o projeto estético de Waddington – muito antes de incorporar a sensação de queda em abismo – pede uma firme atrelagem ao solo, seja pela busca de uma qualidade da mise en scène (busca que transcorre em sentido positivo, sem render, por exemplo, o incômodo “peso da imagem” de Lavoura Arcaica, ou a sofisticação às raias da esterilidade de Abril Despedaçado), seja pela confirmação de uma poesia de geólogo, que examina a terra para extrair-lhe uma beleza que é mais textural do que “essencial”. De Eu, Tu, Eles a Casa de Areia, esse telurismo passou por radicais mudanças cromáticas e físicas. Ao sertão de cores quentes, onde a terra é o que nunca sai do lugar, se segue uma paisagem colorida-em-branco-e-preto e em eterna mobilidade. Se há como falar de uma espacialização do tempo em Tarkovski, em Casa de Areia o processo parece se inverter e resultar na temporalização do espaço, uma vez que este deixa de ser aquilo que permanece e se torna parte do elemento movente, eixo indistinto de um espaço-tempo que escorre nessa locação que nada é senão um imenso relógio de areia. Por isso um ponto do “sistema” pode estar a “um dia e meio” de outro – a medida da distância é o tempo.    

No seu mergulho ao “Brasil profundo”, Waddington já havia mostrado não apenas a preferência por configurar um lugar isolado, mas também a proposição de uma nova matemática do mundo e dos homens (em Eu, Tu, Eles, um teorema afetivo insolúvel; em Casa de Areia, a geometria de um espaço curvo). E é já em Gêmeas, seu primeiro longa-metragem, que se instaura uma obsessão da semelhança que os filmes posteriores re-trabalham: rostos parecidos ou mesmo repetidos, histórias que se reciclam ao capricho do destino, sucessão espacial desdiferenciada. Em Casa de Areia, no solo movediço em que todo traço e todo vestígio são apagados, a semelhança é a forma que mais se aproxima da permanência. O que não é possível é justamente a “escritura”, a tentativa de demarcar limites no território ou livrar alguma coisa do esquecimento através da sua conversão em signos legíveis. O halo solar, na cena após o eclipse, só fica registrado na chapa sensível porque constitui uma marca de natureza indicial, responde diretamente à experiência presente.

Já no segundo plano do filme, após a lenta tomada aérea que transforma o espaço em pura superfície (quase uma gravura), Waddington inscreve a magnificência dos quadros numa estética do pleno preenchimento em que o elemento fora-de-campo não estará necessariamente em contigüidade com o enquadrado, mas antes será o que provisoriamente não pertence ao filme. Os movimentos (de câmera, de personagens) se desenvolvem lateralmente, e as imagens se formam menos numa relação de fundo-superfície do que num crescimento para os lados – discreto parentesco estético com Gerry que parece explicitado no início do filme, com a câmera praticamente repetindo um enquadramento de Gus Van Sant ao acompanhar de perto os rostos de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro lado a lado enquanto caminham. Todo distúrbio que houver nesse ambiente será, de alguma maneira, uma ruptura dessa topografia, uma recusa a essa premissa de “movimentos de orla”.

Na inextensão desse espaço em que a História é um eco distante, uma matéria de cinema fantástico entra quase que por osmose, e um eclipse ou uma lua mélièsiana desdobram em fábula toda a performance meteorológica que o filme traz. Princípio mantido até o fim: sob um céu de ficção científica, mãe e filha se reencontram após anos e anos de uma separação que apenas concretizara a distância entre seus mundos interiores opostos. A composição visual da cena que encerra Casa de Areia não esconde sua tarefa de ser também um equilíbrio dos contrastes (de enquadramento, de tom) – e uma conciliação com as cores. Antes desse equilíbrio, contudo, foi dando boas-vindas às intempéries que Waddington evitou uma lógica de aquariofilia (que não permitiria a entrada de qualquer coisa que escapasse a uma certa escolha visual/temática) e encontrou uma força na entropia do espaço que só tem a somar para sua proposta estética. Casa de Areia é ao mesmo tempo um projeto distante e complementar a Eu, Tu, Eles. O mesmo feelgood no desfecho, a mesma candura disfarçada na crueza, o mesmo prazer em fazer retornar o “semelhante”. O distanciamento está em não se limitar à repetição, não aderir à tautologia autoral, e sim querer expandir seu horizonte de cinema. 

Luiz Carlos Oliveira Jr.