O cinema de
Eric Rohmer é de um rigor apaixonante. Entrar em um
deles é participar de um domínio em que a palavra exerce
papel predominante, mas em que ainda assim todo o sentido
parece sempre deslizar da palavra e passar sempre pelos
interstícios do discurso, se estruturar nos olhos que
reagem imprevisivelmente, aos gestos de rostos minuciosamente
ensaiados e de corpos opacos que mais nos deixam em
dúvida do que exprimem com exatidão seus propósitos.
Embora fale muito, a protagonista de O Raio Verde só tem sua vida alterada quando a visão do horizonte
revela a luminosidade que ela tanto espera; em Agente Triplo (mais novo filme de Rohmer, que exige lançamento nacional
o mais rápido possível), muitas palavras são ditas,
mas elas servem unicamente para despistar, ou, ainda
pior, para se despistar a si mesmo.
Mas um outro aspecto fundamental
no cinema de Rohmer – talvez O
fundamental, e o que faça de seu cinema algo de único
na história dessa arte –, que muitas vezes é deixado
de lado por ser estritamente a-narrativo, é o grande
trabalho de luminosidade e espaço que ele constrói ao
longo da década de 60 com o diretor de fotografia Nestor
Almendros. Almendros, morto de AIDS nos EUA no mesmo
ano em que A Árvore,
o Prefeito e a Mediateca estava sendo produzido,
1992, é um dos fotógrafos decisivos da história do cinema
– além de Rohmer, ele era o fotógrafo preferido de Truffaut,
Jean Eustache e Terrence Malick –, e sua característica,
naturalmente depurada a partir do trabalho com Rohmer
(Rohmer lhe deu primeiro trabalhou quando emigrou de
Cuba para a França, o curta Nadja
à Paris), é o uso de pouca ou nenhuma luz, e de
um aproveitamento “normalizante” da luz natural. Muito
mais criar ambiências com a luz do que utilizá-la para
recortar objetos e rostos. Como esquecer da mágica cor
das tardes ociosas em frente ao mar de O
Joelho de Claire, ou dos interiores em preto e branco
de Ma nuit chez Maud? O cinema de Eric Rohmer
lida primeiramente com a instalação da câmera em um
espaço, e apenas posteriormente com os comportamentos
e as falas dos personagens. A presença bruta, pujança
do espaço real físico faz sempre petição de princípio
em relação às tramas, às intrigas, às evoluções e circunvoluções
da narrativa.
Mas entrar num filme de Eric Rohmer
é também entrar num mundo ordenado, de personagens pequeno-burgueses
ou burgueses tout court, que exercem pequenos jogos de poder e vivem à procura de um
amor ou de um objetivo. Nunca altas bruscas na escala
Richter da dramaticidade – o que não quer dizer que
não haja drama em seus filmes –, e acima de tudo nunca
ou quase nunca a presença de um outro absoluto. Nunca
a diferença de segmentos sociais ocasionando questões
de classe, ou a presença de segmentos excluídos da sociedade:
negros, árabes, imigrantes de toda a espécie. Igualmente
com grupos de comportamento: nada de personagens homossexuais.
Poderíamos ver nisso traços de um conservadorismo presente
em toda a obra? A partir de posição tomada em A Inglesa e o Duque, a preferência é clara
pela codificação aristocrática contra a laicização de
uma república do homem médio vitoriosa com a Revolução
Francesa.
Prefigurar no cinema de Eric Rohmer,
no entanto, apenas o fetiche da eleição de uma determinada
classe social com um determinado tipo de comportamento
e educação social é colocar um pouco o carro na frente
dos bois. Se existe conservadorismo no cinema de Rohmer,
é o mesmo que pode ser imputado a Orson Welles quando
em Soberba ele deplora os novos meios de transporte
ou quando em É
Tudo Verdade ele vai filmar jangadeiros e populares
cariocas dançando samba. É apenas o testemunho de um
artista que presencia as mudanças históricas e percebe
que na passagem algum convívio se perde, algumas espécies
de relações se esvaem no tempo. Qual cinéfilo hoje não
deplora de alguma forma a disseminação dos multiplexes
e faz o elogio do charme das antigas salas de cinema,
como esta que hoje abriga a Sessão Cineclube? Quanto
à onipresença de uma única classe social, presta-se
mais ao cinema de Rohmer a interpretação de que é uma
obra que só pode funcionar nas lacunas do mesmo, pesquisando
microalteridades num tecido que a princípio é considerado
como homogêneo demais, mas que acaba revelando suas
divergências, suas próprias neuroses e insuficiências.
Em numerosos filmes de numerosos cineastas, vemos sempre
a tentativa de dar a voz a um outro recaindo sempre
nas amarras do mesmo através da tipificação (heroicizante
ou derrisória, pouco importa). Eric Rohmer opta apenas
por falar daquilo que conhece bem. E consegue dissecar
como muito poucos o universo que se propõe a expor de
filme a filme em sua obra. E acaba fazendo sua microcomédia
humana.
Em A
Árvore, o Prefeito e a Mediateca, vemos uma mesma
lógica passadista em trabalho, na mesma comédia humana.
Um prefeito arrivista, oportunamente tentando alavancar
sua carreira pela construção de um elefante branco (algo
que difere radicalmente da proposta artística rohmeriana),
e um professor ginasial que opõe-se ao projeto para
preservar uma árvore histórica na região que precisaria
ser cortada para levar a cabo a mediateca. Entre os
dois homens de posições firmes, aparece o fluxo feminino
para fazer cambalear os valores, mostrar que o mundo
não funciona apenas à “preto no branco”. E, pairando
acima de todos, existe a máquina do acaso, esse que
move os sete episódios em que o filme é dividido, e
que acaba determinando mais do que qualquer outra coisa
o ritmo dos acontecimentos e as posições dos personagens.
Acaso que, como a luz, como a construção do espaço,
revela que está inscrito desde sempre no projeto de
Rohmer a idéia do cinema como uma peneira do real mais
do que como seu oposto. A luz e o espaço, como o acaso,
são do mundo, e o cinema seria a arte que não trai o
dado primordial que aparentemente seria (mas não é)
o seu fora, o mundo. A Árvore, o Prefeito e a Mediateca,
um filme em que só se discute sobre a apropriação oportunista
do mundo, é um tijolo privilegiado nessa construção
cine-ecológica.
Ruy Gardnier
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