A Árvore, o Prefeito e a Mediateca
de Eric Rohmer, L'Arbre, Le Maire et la Médiathèque, 1993, França

O cinema de Eric Rohmer é de um rigor apaixonante. Entrar em um deles é participar de um domínio em que a palavra exerce papel predominante, mas em que ainda assim todo o sentido parece sempre deslizar da palavra e passar sempre pelos interstícios do discurso, se estruturar nos olhos que reagem imprevisivelmente, aos gestos de rostos minuciosamente ensaiados e de corpos opacos que mais nos deixam em dúvida do que exprimem com exatidão seus propósitos. Embora fale muito, a protagonista de O Raio Verde só tem sua vida alterada quando a visão do horizonte revela a luminosidade que ela tanto espera; em Agente Triplo (mais novo filme de Rohmer, que exige lançamento nacional o mais rápido possível), muitas palavras são ditas, mas elas servem unicamente para despistar, ou, ainda pior, para se despistar a si mesmo.

Mas um outro aspecto fundamental no cinema de Rohmer – talvez O fundamental, e o que faça de seu cinema algo de único na história dessa arte –, que muitas vezes é deixado de lado por ser estritamente a-narrativo, é o grande trabalho de luminosidade e espaço que ele constrói ao longo da década de 60 com o diretor de fotografia Nestor Almendros. Almendros, morto de AIDS nos EUA no mesmo ano em que A Árvore, o Prefeito e a Mediateca estava sendo produzido, 1992, é um dos fotógrafos decisivos da história do cinema – além de Rohmer, ele era o fotógrafo preferido de Truffaut, Jean Eustache e Terrence Malick –, e sua característica, naturalmente depurada a partir do trabalho com Rohmer (Rohmer lhe deu primeiro trabalhou quando emigrou de Cuba para a França, o curta Nadja à Paris), é o uso de pouca ou nenhuma luz, e de um aproveitamento “normalizante” da luz natural. Muito mais criar ambiências com a luz do que utilizá-la para recortar objetos e rostos. Como esquecer da mágica cor das tardes ociosas em frente ao mar de O Joelho de Claire, ou dos interiores em preto e branco de Ma nuit chez Maud? O cinema de Eric Rohmer lida primeiramente com a instalação da câmera em um espaço, e apenas posteriormente com os comportamentos e as falas dos personagens. A presença bruta, pujança do espaço real físico faz sempre petição de princípio em relação às tramas, às intrigas, às evoluções e circunvoluções da narrativa.

Mas entrar num filme de Eric Rohmer é também entrar num mundo ordenado, de personagens pequeno-burgueses ou burgueses tout court, que exercem pequenos jogos de poder e vivem à procura de um amor ou de um objetivo. Nunca altas bruscas na escala Richter da dramaticidade – o que não quer dizer que não haja drama em seus filmes –, e acima de tudo nunca ou quase nunca a presença de um outro absoluto. Nunca a diferença de segmentos sociais ocasionando questões de classe, ou a presença de segmentos excluídos da sociedade: negros, árabes, imigrantes de toda a espécie. Igualmente com grupos de comportamento: nada de personagens homossexuais. Poderíamos ver nisso traços de um conservadorismo presente em toda a obra? A partir de posição tomada em A Inglesa e o Duque, a preferência é clara pela codificação aristocrática contra a laicização de uma república do homem médio vitoriosa com a Revolução Francesa.

Prefigurar no cinema de Eric Rohmer, no entanto, apenas o fetiche da eleição de uma determinada classe social com um determinado tipo de comportamento e educação social é colocar um pouco o carro na frente dos bois. Se existe conservadorismo no cinema de Rohmer, é o mesmo que pode ser imputado a Orson Welles quando em Soberba ele deplora os novos meios de transporte ou quando em É Tudo Verdade ele vai filmar jangadeiros e populares cariocas dançando samba. É apenas o testemunho de um artista que presencia as mudanças históricas e percebe que na passagem algum convívio se perde, algumas espécies de relações se esvaem no tempo. Qual cinéfilo hoje não deplora de alguma forma a disseminação dos multiplexes e faz o elogio do charme das antigas salas de cinema, como esta que hoje abriga a Sessão Cineclube? Quanto à onipresença de uma única classe social, presta-se mais ao cinema de Rohmer a interpretação de que é uma obra que só pode funcionar nas lacunas do mesmo, pesquisando microalteridades num tecido que a princípio é considerado como homogêneo demais, mas que acaba revelando suas divergências, suas próprias neuroses e insuficiências. Em numerosos filmes de numerosos cineastas, vemos sempre a tentativa de dar a voz a um outro recaindo sempre nas amarras do mesmo através da tipificação (heroicizante ou derrisória, pouco importa). Eric Rohmer opta apenas por falar daquilo que conhece bem. E consegue dissecar como muito poucos o universo que se propõe a expor de filme a filme em sua obra. E acaba fazendo sua microcomédia humana.

Em A Árvore, o Prefeito e a Mediateca, vemos uma mesma lógica passadista em trabalho, na mesma comédia humana. Um prefeito arrivista, oportunamente tentando alavancar sua carreira pela construção de um elefante branco (algo que difere radicalmente da proposta artística rohmeriana), e um professor ginasial que opõe-se ao projeto para preservar uma árvore histórica na região que precisaria ser cortada para levar a cabo a mediateca. Entre os dois homens de posições firmes, aparece o fluxo feminino para fazer cambalear os valores, mostrar que o mundo não funciona apenas à “preto no branco”. E, pairando acima de todos, existe a máquina do acaso, esse que move os sete episódios em que o filme é dividido, e que acaba determinando mais do que qualquer outra coisa o ritmo dos acontecimentos e as posições dos personagens. Acaso que, como a luz, como a construção do espaço, revela que está inscrito desde sempre no projeto de Rohmer a idéia do cinema como uma peneira do real mais do que como seu oposto. A luz e o espaço, como o acaso, são do mundo, e o cinema seria a arte que não trai o dado primordial que aparentemente seria (mas não é) o seu fora, o mundo. A Árvore, o Prefeito e a Mediateca, um filme em que só se discute sobre a apropriação oportunista do mundo, é um tijolo privilegiado nessa construção cine-ecológica.

Ruy Gardnier