Nos anos 90, David Cronenberg
propõe duas adaptações de obras-primas
da literatura underground do século XX: O Almoço
Nu de William Seward Burroughs (1959) e Crash de James
Graham Ballard (1971). Curiosamente, em algum momento
de suas carreiras, ambos ficaram associados à
literatura de ficção científica/fantástica
(notadamente Nova Express, para Burroughs, e
todos os primeiros livros de Ballard, entre eles The
Drowned World) da mesma forma como ficou Cronenberg
durante os anos 70-80, em filmes como Videodrome,
Scanners, A Hora da Zona Morta ou A
Mosca. 1988 faz um ponto de clivagem em sua carreira:
a fluidez do gênero passa a se ralentar, a intriga
corporal dos personagens passa a afetar também
- e talvez mais profundamente - suas psicologias, e
uma escrita mais experimental passa a se sentir no cinema
cronenberguiano a partir de Gêmeos - Mórbida
Semelhança. De certa forma, a adaptação
dessas duas gemas da literatura são um momento
privilegiado para Cronenberg refletir sua própria
posição de criador que sai de um registro
de gênero mais estrito e entra mais especificamente
no domínio da "grande arte" que ele
vai perseguir nos anos 90.
Dito isso, vale dizer que O Almoço Nu é
um livro absolutamente inadaptável para o cinema,
e que os fragmentos de ficção que Cronenberg
transforma em Mistérios e Paixões (num
desses inspiradíssimos títulos péssimos
que os distribuidores nos arrumam) se devem tanto a
acontecimentos na própria vida de Burroughs e
de seu período em Tânger (que seria locação
do filme não tivesse estourado a Guerra do Golfo,
o que obrigou a produção a recriar o Marrocos
num estúdio de Toronto), durante o qual escreveu
o livro, quanto a momentos que de fato estão
no livro em forma de ficção meta-documental.
O que faz desse filme uma adaptação das
mais estranhas. Primeiro porque ela parece funcionar
apenas a partir de alguns motivos recorrentes: Judy
Davis, máquinas de escrever que se transformam
em baratas, a carne negra que a princípio é
usada para diminuir o efeito do pó de dedetização
("bug powder") no qual William Lee e sua esposa
se viciaram, relatórios, Benway, Guilherme Tell,
mas acima de tudo conspirações. A paranóia
é freqüente e William Lee parece estar alheio
a tudo aquilo que dizem a ele: ele ouve tudo como se
fosse uma revelação, como se sua vida
dependesse das descobertas dos agentes-baratas-máquinas-de-escrever
ou dos conselhos de Tom Frost. Cronenberg transforma
O Almoço Nu, em termos de estrutura, num
romance policial à la nouveau roman.
Visualmente, o filme cria um universo escuro e opaco,
ornado por verdes e por laranjas discretos mas pregnantes,
e sempre resignados a uma pequena parte da tela. O terreno
é o do neo-noir, solo que no mesmo ano
de Mistérios e Paixões deu Barton
Fink - Delírios de Hollywood (1991),
filme quase irmão na estética e na temática,
ainda que o lógica do derrisório dos irmãos
Coen tenha muito pouco a ver com a lógica de
imersão do cinema de Cronenberg. Como em todo
(ou quase todo) noir ou neo-noir, é
uma lógica da investigação e do
complô que rege a relação do personagem
principal com o mundo. Mas é uma investigação
sem objeto (atrás de que corre William Lee? O
que ele busca?), e um complô do qual não
somos informados, nem sobre seus limites, nem sobre
seu objetivo (o que leva o personagem a correr atrás
de Benway, de Fadela ou do francês Yves Cloquet?
Sobre o que eles conspiram? Quais os segredos que eles
guardam?). Toda a trama de mistério parece ser
apenas um grande mcguffin - obrigação
externa cujo único propósito dramático
é propulsionar o personagem a perseguir o verdadeiro
tema da obra - para a verdadeira investigação
do filme.
E o centro oculto do filme, aquilo que se instala sub-repticiamente
e vai aos poucos dominando de forma completa, é
o ato literário, o acesso ao escrever como acontecimento
na vida de uma pessoa, e esse acontecimento não
como dom, mas como vício, como praga e como doença
(característica pregnante em todo cinema de Cronenberg)
que, uma vez instalados, só farão prescrever
suas rotinas sobre os corpos de seus hóspedes.
Se a "clivagem temática" de Cronenberg
a que nos referimos no começo existe, é
porque agora o "corpo estranho" não
se insinua mais no terreno da ficção fantástica,
mas daqui em diante opera nos delírios mentais
do cotidiano, nas relações com nossos
objetos de predileção, nossas obsessões
corriqueiras. Nada glamourosa ou chique, a literatura
em Mistérios e Paixões é
a última provação, é a matéria
insidiosa e viciante que arremessa nosso personagem-escritor
no mundo das alucinações paranóicas,
um universo estranho em que nada é o que parece,
e tudo aquilo que não é central pode funcionar
como desvio de atenção. O foco, o foco:
escrever relatórios. É a partir desses
relatórios e de coisas prosaicas como uma relação
muito particular com máquinas de escrever que
nasce o tecido literário, que inconscientemente
ao próprio artista brota o livro, que de um relato
a partir da vivência surge a matéria da
escrita por si mesma. O mesmo lance de dados jogado
até o final: como gesto que inaugura sua viagem
(em sentido figurado e em sentido próprio), é
preciso que William Lee repita Guilherme Tell para provar
seu ofício de escritor.
Como o curta-metragem Câmera ou Videodrome,
Mistérios e Paixões é um
filme decisivo na carreira de Cronenberg. É o
momento que o narrador cronenberguiano abandona a frieza
distanciada, clínica, característica de
algumas de suas obras-primas (Crash vem à
mente primeiro), e mergulha de cabeça no vício
do personagem transformado em vício da ficção.
Filmes entrópicos, de compreensão difícil
ou por vezes impossível - os encontros de William
com os outros personagens de Mistérios e Paixões
nunca funcionam no sentido da evolução
narrativa, e isso nos impede de entender dramaticamente
sua colocação na história -, são
momentos particulares em que David Cronenberg prova
de seu próprio veneno, se insere na trama que
enreda para nós, cai voluntariamente em sua própria
teia. Menos um filme de crise do que a base para um
novo programa, Mistérios e Paixões
(se) apaixona pelas incertezas da arte.
Ruy Gardnier
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