LaTulippe, este desconhecido
Tentando apagar um erro de duas
décadas, o Festival de Cannes de 2005 prestará
uma merecida homenagem a um nome que deveria constar
nos anais do cinema se não tivesse sido condenado
ao ostracismo. Jean Baptiste laTulippe apresentará
seu novo filme, o primeiro desde 69, um ano de cair
em desgraça.
Nascido em uma aldeia no sul
da França (ou em um pardieiro na Tanzânia,
as versões variam), laTulippe ingressou aos 9
anos na escola de cinema e decidiu logo que iria gastar
toda a fortuna da família em um processo de estudo
com fins de criar uma revolução estética
nas artes cinematográficas. E assim o fez.
Em seu primeiro filme, intitulado
Vissicitude, laTulippe experimentava com a questão
da representação fílmica do espaço.
Toda a ação se dava fora do quadro. Durante
os primeiros dez minutos um casal discutia acaloradamente
em uma saleta. Em quadro, só um tamborete de
madeira, uma mesa gasta e um quadro com um palhaço
triste. Em meio à discussão amorosa eles
recebiam um telefonema com a informação
de que a mãe da protagonista agonizava em um
hospital. Ouvíamos então o casal saindo
apressadamente e um carro indo embora, também
com pressa. A próxima hora e meia de filme consistia
da imagem do tamborete, da mesa e do quadro, sublinhada
por sons da vizinhança. Por volta dos 290 minutos
alguém bate na porta, somente uma vez, aguarda
e depois vai embora lentamente. O filme termina sem
aviso cinco minutos mais tarde. A identidade dessa figura
e a sua significação para a situação
da França pré '68 foram discutidas por
anos a fio.
Vissicitude II
mostrava um cineasta voltado para outro problema. Questionando
a função do ator no cinema atual, laTulippe
realizou uma trama existencialista protagonizada pelo
tamborete de madeira. O enquadramento e a cenografia
lembravam muito seu filme anterior, e alguns críticos
o acusaram de se repetir, mas a pregnância diegética
do pequeno banco de madeira conquistou toda a comunidade
artística.
LaTulippe então, apoiado
pela crítica de suas obras anteriores, juntou
coragem para sua obra mais instigante. Vissicitude
III era um filme que atacava ao mesmo tempo o
problema do espaço representado no quadro, os
atores e o tempo. Toda a ação era representada
pelo mesmo tamborete (com um cachê milionário
dessa vez), mas ele permanecia as dezessete horas de
duração do filme fora da tela, enquanto
o enquadramento se mantinha no canto do quarto em que
ele deveria estar. Buñuel chamou o filme de "a
única tábua de salvação
possível para uma revisão da representação
formal do mistério no cinema". mas o
resto da crítica não foi tão favorável.
Mesmo sem dispor de uma unanimidade
crítica, laTulippe foi o grande vencedor de Cannes
em 1968. O tamborete levou o prêmio de melhor
ator, mas não compareceu à festa. Revistas
de fofoca publicariam uma semana depois fotos comprometedoras
do famoso ator em uma orgia constrangedora em uma famosa
loja de móveis, que teve seu nome preservado
no escândalo.
Levado pela fama, laTulippe
se perdia em uma vida de drogas, sexo sujo e escargots
de procedência duvidosa. No ano seguinte foi realizada
uma retrospectiva de seus três filmes que durou
um mês, durante a qual a visão da crítica
foi lentamente mudando de opinião. A revisão
dos filmes em sequência tanto tempo depois de
seu lançamento havia criado um mal estar na intelectualidade,
que agora acusava seu experimentalismo de ser uma "farsa
pequeno-burguesa" (Le Monde), "um sinal
da decadência ocidental" (Cahiers du
Cinema) e "O quê?" (Positif).
Alimentado pelas críticas
ferrenhas, laTulippe realizou seu filme seguinte como
um tapa na cara de seus detratores. Vissicitude
IV seguia a mesma linha do filme anterior. O
tamborete, agora, estava a alguns quilômetros
do seu canto. Sua representação era forçosamente
canastrona e baseada em sua expressão corporal,
uma vez que o filme era mudo. Novamente, era apresentado
um estudo sobre o representado e o não-representado
na tela. Mas dessa vez laTulippe realizou isso filmando
a ação sem tirar a objetiva da câmera.
As críticas foram ferrenhas.
A casa de laTulippe foi incendiada três vezes
consecutivas e o diretor teve que se disfarçar
de angolano para fugir do país. Renegado por
crítica e público, o artista desapareceu.
Há mais ou menos um ano
atrás, um grupo de estudantes parisienses encontrou
diversas latas de filme com material inédito
do diretor sendo utilizadas como calço de mesa
na Cinemateca Francesa. Os negativos foram revelados
e uma pequena mostra apresentando a nova descoberta
em pouco tempo se tornou uma coqueluche na cidade.
Mas a parte mais importante
dos rolos só terminou de ser montada este ano,
e agora será exibida pela primeira vez no mais
famoso festival europeu. Se trata do último filme
de laTulippe, Vissicitude V, que até
agora só foi assistida por um pequeno grupo seleto
de restauradores, que relatam ser um filme destinado
a mudar para sempre a história do cinema. Do
que ele trata? Teremos que esperar alguns meses para
descobrir. A única informação que
temos é que Vissicitude V não
se utiliza de projetores para ser exibido. A cópia
só pode ser reproduzida com uma engenhoca feita
de uma batata, quatro palitos de dente de mogno e um
farol de milha de um Karmann Ghia TC 66. Só nos
resta esperar.
Tiago Teixeira
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