JERRYLAND

COLEÇÃO JERRY LEWIS:

O DELINQÜENTE DELICADO, de Don McGuire
The Delicate Delinquent, EUA, 1957

O MENSAGEIRO TRAPALHÃO, de Jerry Lewis
The Bellboy, EUA, 1960

O TERROR DAS MULHERES, de Jerry Lewis
The Ladies Man, EUA, 1961

O MOCINHO ENCRENQUEIRO, de Jerry Lewis
The Errand Boy, EUA, 1961

O PROFESSOR ALOPRADO, de Jerry Lewis
The Nutty Professor, EUA, 1963

O OTÁRIO, de Jerry Lewis
The Patsy, EUA, 1964



Terá algum cineasta se divertido mais que Jerry Lewis com o cinema? Terá algum ator demonstrado maior paixão por estar em quadro, sendo observado em sua performance? Eis duas das muitas perguntas que nos fazemos ao assistir à coleção que, embora apanhe apenas o começo da filmografia de Lewis como diretor (quem sabe não existe uma caixa 2 a caminho?), traz alguns de seus momentos inesquecíveis. Como se não bastassem os filmes em si, há ainda uma formidável seleção de extras, com cenas excluídas, testes de atores, tomadas alternativas, uma inusitada vinheta de marketing social, um pequeno documentário sobre O Professor Aloprado, depoimentos do diretor e de pessoas próximas, em suma, tudo aquilo que justifica o acréscimo de materiais complementares ao filme – ao contrário das informações irrelevantes ou das falcatruas promocionais que na maioria das vezes preenchem o DVD. Contando com arquivos do próprio acervo pessoal do cineasta e reiterando o fato da Paramount ter sido o primeiro grande estúdio a se preocupar com a preservação de sua memória, a coleção consolida o contato com essa persona irresistível, tão cativante nas gags quanto nos comentários sobre como as elaborava, ou nas histórias que conta e que valem como uma definição do que é cinema (ao menos o seu cinema, o que já é muita coisa).

Seis filmes, seis saborosas viagens ao maior e melhor parque de diversões já construído pelo cinema. Seja no tour de force cenográfico que constitui O Terror das Mulheres (filmado em um cenário de dois andares, que ocupava uma enorme área dos estúdios da Paramount e cuja construção durou não menos que oito meses), seja na maratona criativa de que resultou O Mensageiro Trapalhão (escrito, produzido e dirigido quase que simultaneamente, numa jornada de trabalho tão curta quanto frenética), Lewis traduz o espaço para uma linguagem corporal que ele domina como poucos, e que faz do enquadramento uma contingência permanente. É nítida a preferência de Lewis, ao filmar gags, pelo plano geral, com a câmera corrigindo o enquadramento de acordo com a movimentação – nem sempre ensaiada – do seu personagem. Fundamentais em relação a isso são as cenas de bastidores, assim como as cenas que ficaram de fora, de O Mensageiro Trapalhão (em cujo DVD estão os melhores extras da coleção), que demonstram um processo de composição profundamente afeito à presença de espírito do comediante. É ligar a câmera e deixar a cena acontecer (generosidade de encenação que ele repassa aos outros atores que trabalham em seus filmes). A princípio, não há nada na imagem que possa sugerir um acidente de percurso. Basta que Julius Kelp (O Professor Aloprado) ou Stanley Belt (O Otário) apareça, contudo, para que cada elemento em quadro represente um perigo, uma iminência de queda (dele e dos objetos), uma possibilidade de desmesura. Estamos falando, afinal, de um cinema de abalos sísmicos – quer maior expressão disso do que os tremores que fazem o cenário sacudir até rachar ao meio (a cena do avião que aterrissa no hotel em O Mensageiro Trapalhão; o final da cena na casa do professor de canto em O Otário)? Já que se trata de um cinema da queda, é no chão que o ator Lewis prefere estar. Steve Lawrence, que o acompanha nas trilhas de comentários de todos os filmes contidos na coleção, diz nos extras de O Otário que a Paramount guarda numa redoma de vidro o único pedaço de chão de estúdio em que Jerry Lewis nunca caiu. "Ele passava mais tempo no chão do que andando", o ator/diretor concorda, referindo-se à sua persona cômica em terceira pessoa.

Assistindo aos filmes em ordem cronológica, tem-se a impressão de um percurso ascendente: um filme não dirigido por ele, O Delinqüente Delicado, com grandes méritos, porém carente da outra parte da genialidade de Lewis (a que se dá na fusão entre ator e diretor); dois filmes em esquetes, bastante semelhantes na estrutura e diferentes apenas na contextualização do espaço (O Mensageiro Trapalhão e O Mocinho Encrenqueiro), e um filme em que uma inclinação estetizante se soma ao repertório cômico (O Terror das Mulheres); uma quase obra-prima em que Lewis dá sua leitura pessoal da alternância personalística entre Dr. Jekyll e Mr. Hide (O Professor Aloprado, que um bocado de gente considera seu melhor filme); e, por fim, uma obra-prima que totaliza perfeitamente as primeiras ambições de Lewis ao se lançar à direção (O Otário).

Se O Terror das Mulheres salientara a experimentação em cima de um essencial papel expressivo encomendado às cores e ao cenário, rendendo seqüências em que o filme demonstrava sua irreprimível tendência à abstração, O Professor Aloprado foi o projeto que levou uma trama ao cinema dirigido por Lewis (que a havia recusado em seus trabalhos anteriores). O diretor afirma nos comentários que sua intenção foi fazer um filme de tensão e distensão (oscilando entre engraçado e assustador). A narrativa de soma de situações, que evoluía pela dialética criada entre as cenas de Lewis sozinho e aquelas de sua interação com outras pessoas, não só vê sua oposição (que antes era apenas narrativa e rítmica) ser personificada nas figuras de Julius Kelp e Buddy Love como ainda ganha a contribuição de um par romântico – e, conseqüentemente, de causas e efeitos. Da mesma forma que o cientista dentuço e o cantor boa pinta acabam por se revelar publicamente uma só pessoa, e se unir numa só imagem, o filme afirma a equivalência de poder significante entre o mostrado e o intuído, o dentro e o fora da tela. Quando Buddy Love sobe ao palco, no final do filme, e a poção começa a parar de fazer efeito no meio da sua performance, é um "simples" jogo de campo-contracampo o que nos permite ver a destransformação de Kelp e a reação de Stella (por quem está apaixonado e por quem levara tudo aquilo adiante): a cada corte em que o filme volta para Lewis, vemos que um novo traço de Kelp retornou a seu corpo enquanto a câmera estava no rosto de Stella. Na ausência da câmera, uma presença se faz. E como esquecer do longo plano subjetivo em que as pessoas olham deslumbradas para a câmera, enquanto esta atravessa a rua até entrar no piano bar em que Buddy Love fará sua primeira aparição? Todo o suspense criado por essa opção de mise en scène é sensacional, ao mesmo tempo em que revela a contrapartida narcisista das caretas de Lewis.

A progressão do trabalho com as cores (destaque deve ser dado, aliás, a W. Wallace Kelley, técnico em efeitos de câmera que Lewis promove a seu diretor de fotografia oficial), com o cenário artificial e, notadamente, com o som conflui para o que talvez seja o grande intento da obra de Lewis: a transformação do mundo em seu playground particular. Não que outras pessoas não estejam convidadas, muito pelo contrário. O que todos devem ter em mente, entretanto, é que nesse playground o protagonista é um só. O mundo aqui em jogo gira ao redor de uma criança chamada Jerry Lewis, do que O Otário chega a ser um glossário de termos básicos. Há uma seqüência de O Otário que é definitiva – e que inclui um dos mais bonitos flash-backs da história do cinema. Tudo começa quando ocorre um corte dos pés de um garoto de oito anos, que dança ao som do hit do momento, para os pés de Lewis, que também dança (ao seu modo desajeitado e louco, naturalmente). "Você realmente gosta das coisas simples, não é mesmo?", pergunta-lhe Ellen, a personagem de Ina Balin, ao encontrá-lo naquela situação descontraída. Ao que ele responde: "Sim, claro. As coisas difíceis sempre me causam problema". Ocorre então o diálogo sobre a importância das lembranças, boas ou ruins, e vem o flash-back do baile de primavera em que, após ser humilhado pela maioria das pessoas da festa, Lewis conhece uma jovem com quem dança uma música lenta, no meio do ginásio que fica vazio de uma hora para outra. Trata-se, portanto, de: 1) reduzir tudo ao essencial, ao máximo de simplicidade possível e 2) encontrar tanto a música certa como o par ideal para a dança.

A música de Jerry Lewis não pode ser aquela ditada pelas fórmulas prontas que muitos produtores seguem à risca. Tem de ser a música inventada por ele, como na cena em que rege uma orquestra imaginária em O Mensageiro Trapalhão (sobre as trilhas de David Raskin para seus filmes, aliás, Lewis diz "apenas" que eram a espinha dorsal do tipo de comédia que fazia). Stanley Belt, garçom transformado em comediante em O Otário, a princípio só tem graça no cotidiano, longe dos palcos, só funciona acidentalmente. O final do filme, no entanto, atribui o insucesso à excessiva pressão e à ineficácia artística dos produtores. Somente quando Lewis toma as rédeas, inusitadamente, improvisando com aquilo de que dispõe no momento, é que as coisas dão finalmente certo, e sua participação no showbusiness vira sucesso. Como é verbalizado na antológica cena em que Morty dialoga com um fantoche de dedo na fábula metalingüística de O Mocinho Encrenqueiro, há uma afirmação perpassando todos os planos de O Otário: a de uma defesa da sábia magia resguardada no imaginário da infância. O típico personagem de Lewis é alguém que dormiu quando fez oito anos e só acordou aos trinta. Mas, à semelhança de grandes comediantes da história do cinema (Chaplin, Keaton, Tati), essa figura inocente – e bem intencionada à direta proporção de suas trapalhadas – termina por ser um perspicaz cronista da vida moderna, além de um sutil sabotador das relações de trabalho (basta ver como os protagonistas de O Mensageiro Trapalhão e O Mocinho Encrenqueiro vivem fazendo as maiores besteiras e levando seus patrões à loucura, sem que a palavra "demissão" seja sequer sugerida).

Na trilha de comentários de O Otário, Lewis conta que seus atores sempre permaneciam no set, mesmo após o término de suas cenas, para assistir ao restante. Era como se estivessem numa festa e não quisessem que ela terminasse. E a verdade é que, nem que seja para servir de escada para suas piadas, todos são maravilhosamente bem recebidos no mundo de Jerry Lewis. O único "perigo", ao que parece, é não querer mais sair de lá.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

(DVD Paramount)