Cartas dos leitores
Sobre Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci

Caro Ruy,

Acabo de ler a carta de Júlio César sobre Os Sonhadores.

Não sei desde quando está lá, no Plano Geral, mas o fato é que só hoje a vi e não posso deixar de sair em defesa desta que considero a melhor publicação sobre cinema em nossas terras.

Voltando à carta, entendo a identificação dele com o filme, advinda de suas memórias pessoais, mas há de se analisar o filme para além delas.

Em verdade, considero o filme de Bertolucci em muitos momentos traidor das ideologias mesmas que o leitor usa para justificá-lo.

Para mim, não deixa de ser emblemático que o filme mais representativo e fiel ao espírito de Maio de 68 tenha sido feito antes de 1968. La Chinoise, de Godard, é de 1967 mas capta e antecede com primazia o espírito desse período.

É como se Maio de 68, após se concretizar, representasse um daqueles momentos em que a realidade transcende a ficção, que fica impossibilitada de representá-la.

Apesar das várias referências à Chinoise em Os Sonhadores, as mesmas não se estenderam à sua ousadia, inovações e à capacidade de retratar os sentimentos que afloraram naquela primavera de 68.

As (poucas) cenas externas ao apartamento, como a manifestação em frente à Cinemateca e o confronte final nas ruas repletas de barricadas de Paris, carecem de vida e deslumbramento e deixam a desejar no retrato de uma época vivida como a utopia sendo realizada, como se os véus através dos quais vemos o mundo tivessem sido rasgados e as portas da percepção se aberto.

Os jogos cinematográficos entre os irmãos incestuosos - criados para serem também um jogo entre o diretor e os espectadores, criando a empatia expressa pela carta do leitor - ao invés de colocarem as referências a filmes clássicos de maneira sutil na trama, são ao invés disso anunciados ostensivamente, quase dizendo "ei, prestem atenção, estou fazendo mais uma homenagem", como se Bertolucci duvidasse da força própria dessas referências e dos filmes das quais são originadas.

E tudo termina com o personagem americano, a meu ver o mais crítico e emblemático dos problemas do filme. Ele atua como a consciência, como o grilo falante dos dois irmãos, e por conseqüência de todo movimento de 1968. Nada errado em si, não fosse as contradições que isso acarreta. Primeiramente o personagem era apresentado no início do filme como um sonhador, um divagador (como por exemplo na cena do jantar em família) para depois se mostrar cético e arrogante em relação aos irmãos franceses, sendo que essa guinada do personagem acontece sem nenhum motivo aparente, de uma hora para outra, e não como um suposto "amadurecimento" dele.

Paralelamente, o jovem americano é claramente o alter-ego de Bertolucci, observando e analisando tudo pela ótica atual e dando sua sentença para o que foi o Maio de 68. Entretanto e contraditoriamente, sua crítica aos jovens irmãos e ao movimento de 68 como um todo parece ter saído diretamente do seio da década de 60, época em que se acreditava numa Verdade absoluta a ser descoberta, e não com a visão de alguém dos dias atuais, estes tempos pós-modernos, onde não existe mais a Verdade e já foi decretado, para o bem ou para o mal, o fim da História. O que temos agora são verdades e histórias particulares, individuais, ou no máximo compartilhadas por um grupo restrito de pessoas. Nesse cenário, não cabe a maneira didática e arrogante com que Matthew critica as crenças e ideologias dos dois irmãos.

Numa época repleta de filmes que captam esse espírito (pós) moderno, com finais abertos ao espectador e não decretos, com sussurros e não discursos - como La Niña Santa, Mal dos Trópicos e Encontros e Desencontros, pra ficar apenas com os mais recentes - Bertolucci nos entrega um final moralizante extremamente preocupante.

Por esses e outros motivos é que concordo com Cléber Eduardo quando ele diz que Os Sonhadores é um filme que "filma fantasmas".

É isso. Só queria deixar registrada minha opinião.

Continuem o excelente trabalho!

Abraços,

Leonardo Mecchi


Leia a carta de Julio César de Miranda

Leia a crítica de Cléber Eduardo

Leia a crítica de Bruno Andrade