Profissão: Repórter
de Michelangelo Antonioni, The Passenger, 1975, Itália/França/Espanha/EUA

Sob muitos aspectos, Profissão: Repórter representa o ápice de uma proposta de cinema que Antonioni havia quase tornado um estado normativo em seu tour de force pela estetização de ausências (não apenas a trilogia que envolve ambiciosas figuras de alienação existencial -A Aventura, A Noite e O Eclipse -, mas também o anterior O Grito e o posterior Deserto Vermelho) e que depois incorporara de vez a ebulição social e artística que ocorria ao seu redor (Blow-Up, Zabriskie Point). Os filmes de Antonioni sempre foram do presente, sempre falaram das coisas que ocorriam no mundo enquanto eram realizados e sempre traçaram uma cartografia das relações humanas naquele dado momento. Mas é nítido como a partir de um certo ponto aumenta a urgência de lidar com referências que são tão mais locais quando conseguem ser representativas de um estado de coisas alastrado pelo mundo (Blow-Up é menos um filme sobre as "cores" de Londres nos anos 60 do que um rito de passagem de toda a cultura visual). Essa proposta de cinema de que Profissão: Repórter é a forma acabada, na verdade, pode perfeitamente ser aplicada a grande parte do que se buscou definir por cinema moderno. É como se Antonioni tivesse decidido pôr um ponto final, mesclando e ultrapassando seus ingredientes pregressos, na escalada que fez enquanto empreendia um profundo esforço na direção de estudar as possibilidades do plano. Profissão: Repórter é o exemplo perfeito daquele cinema - que precisou esperar pela renovação de instrumentos e pela evolução natural de sua história das formas - em que cada plano é uma aventura estética, um desafio que vai da técnica à linguagem e à produção de sentido.

Feito em 1975, quando o cinema se questiona permanentemente sobre a necessidade de ser auto-reflexivo (para muitos uma exigência política/estética do período) e sobre a selvagem influência que a psicanálise exercia tanto no campo da teoria do cinema quanto na própria prática, o filme se lança a um enredo bem afeito ao momento: o de um personagem que troca de identidade com outro. Antonioni, portanto, provocador nato, distribui as peças e incita o jogo - não faltam indícios de uma abordagem do sujeito que faz eco à distinção lacaniana entre a ordem do imaginário e aquela do simbólico. Nesse filme, a narrativa permite que se enxergue uma passagem das relações especulares de sujeito a sujeito, com a devida assunção dos processos de projeção-identificação, a um "complexo intersubjetivo de tipo simbólico", quando ocorre a extorsão de imagem que leva um personagem a lidar com os encargos da vida do outro. Cabe a Jack Nicholson, em atuação quase tão icônica quanto nos seus posteriores protagonistas de Um Estranho no Ninho e O Iluminado, interpretar o agente desse rolo com as identidades: David Locke, repórter que está fazendo um documentário sobre as guerrilhas que ocorrem numa região da África, e que se aproveita da morte de um homem de mesmo biótipo, que estava hospedado no seu hotel, para mudar de nome e levar uma vida diferente. Talvez seja o próprio ciúme de Locke, ao ouvir Robertson falar sobre as viagens e o eterno desprendimento de sua vida, o que explica a morte lacônica deste último. Antes de um filme sobre a troca de identidades, trata-se de um filme sobre o acúmulo identitário, pois no fim das contas ele não substitui, mas sim acumula as identidades sua e de Robertson.

Além da inevitável comparação com a psicanálise, a política de reflexividade está em várias cenas, desde as imagens de arquivo em que o zoom, este apagador das distâncias, interroga a posição que o olhar deve estabelecer diante de um fuzilamento, até a cena em que o líder guerrilheiro entrevistado vira a câmera na direção de Locke e pede para que ele refaça as perguntas. Sem falar na maneira como o jornalismo é questionado no filme, não custando lembrar que esse é um momento prolífico quanto à especulação, pelo cinema, do papel da televisão na sociedade e do re-posicionamento do indivíduo a partir da perda de centros estáveis - um ano depois, por exemplo, Sidney Lumet estará fazendo Rede de Intrigas (Network, 1976).

Mas qualquer questão temática colocada por Profissão: Repórter, por mais complexa que seja, Antonioni trata como questão, obrigatoriamente, de cinema. Em uma cena do início, por exemplo, a câmera sai de Jack Nicholson, passeia pelo espaço e reencontra seu personagem mais adiante, vivendo um momento que, na diegese, é anterior ao presente: a linha do tempo junta suas pontas, passado e presente cabem num mesmo plano. A voz em off, reproduzida pelo gravador (o objeto que é primeiramente mostrado no plano, em escala aproximada), parece acompanhar a panorâmica realizada pela câmera como a querer preencher o espaço entre uma e outra instância temporal - e de fato é o play-back do diálogo o fio condutor desse original flash-back. No começo do plano, Locke está trocando a foto do seu passaporte com a do passaporte de Robertson, e quando este aparece de costas na varanda do hotel, num primeiro momento podemos tranqüilamente confundi-lo com Locke, mas logo este surge pela direita do quadro e nos mostra que o filme já tratava ali de misturar as identidades dos dois.

Assim como Theo Angelopoulos fará pouco mais de dez anos depois em Paisagem na Neblina, Profissão: Repórter é um filme que a cada plano parece totalizar uma concepção de cinema - do que o plano-seqüência do final, obviamente, representa o ponto máximo. Esse plano-seqüência estimula a concorrência entre os diversos filmes que estão acontecendo simultaneamente: há o filme que vemos, há aquele que ouvimos, há aquele que imaginamos através do diálogo com o fora-da-tela. É o fechamento de uma idéia anunciada desde o início do filme, pois já na primeira seqüência de Profissão: Repórter há uma recapitulação do universo temático de Antonioni: a comunicação parece impossível; o deserto se esprai como uma verdadeira paisagem subjetiva, tal como o eram as ilhas rochosas e monocrômicas de A Aventura; o carro de Locke atola na areia do deserto e ele não sabe o que fazer para tirá-lo dali; as ações ou são interrompidas no meio ou são pachorrentas, não vemos o herói motivado e ativo do cinema clássico; o mundo em que o filme se encontra precede a sua narrativa, o espaço inspira o filme e nunca o contrário.

Embora condense, desse modo, muitas das aspirações do cinema que Antonioni havia feito até então, Profissão: Repórter é também uma obra inédita, uma experimentação com novos elementos. E não poderia ser diferente, uma vez que o próprio protagonista do filme diz que o grande problema está na inadequação dos velhos códigos, que todos carregam intrinsecamente, às transformações e às diferenças do mundo. Por reconhecer que o mundo exige sempre novas formas de percepção e cognição, Antonioni não se permite a repetição de fórmulas. Esse mundo em constante deslocamento (de sentido, de direção, de cor, de nacionalidade) induz a câmera a se mover em quase todos os planos do filme. E se há alguém que simplesmente vive esse deslocamento - sempre calma, sempre com uma resposta imediata seja lá qual for a pergunta -, ao invés de buscar seu sentido, é a personagem de Maria Schneider, a jovem estudante de arquitetura que resolve acompanhar Nicholson em sua jornada. Ela, com seu ar blasé e pouco exigente em relação às motivações, é a única que consegue achar um jeito plácido de transitar por esse verdadeiro império da ambigüidade construído por Antonioni.

Luiz Carlos Oliveira Jr.