AÇÃO: OS TRÊS ONE-ARMED SWORDSMAN

Espadachins são conhecidos por sua habilidade em manejar a espada; cortar o braço de um deles, portanto, seria selar sua morte, garantir a sua eterna aposentadoria da vida de guerreiro e do mundo das artes marciais, perdendo tudo de valor. Mas heróis existem como exceções. Logo, o "one-armed swordsman" ("espadachim de um-braço-só"), herói chinês retomado por Chang Cheh em alguns de seus filmes, é aquele que encontra caminhos paralelos, aquele cuja maestria supera o ordinário de uma forma incomum. Seu espírito de resistência vai além das constrições de sua situação física; ele aprende a controlar o braço esquerdo com precisão extrema, a ponto de empunhar uma espada melhor que seus adversários de dois braços. Desconfiado das artes marciais, ele procura uma vida serena, apenas perturbada quando as circunstâncias acordam seu senso de dever de usar suas habilidades adquiridas para o bem.

Chang Cheh faz três filmes com o herói: One-Armed Swordsman, em 1967, a continuação Return of the One-Armed Swordsman, em 1969 e outro entitulado New One-Armed Swordsman, em 1971, no qual ele retoma o personagem em uma história diferente da primeira. Os três são belos expoentes dos seus filmes de espadachim. O primeiro é assumidamente romântico, apresentando questões relativas à relação mestre-discípulo e à moral que rege as artes marciais, opondo-a a seu eixo central, que é a relação entre o herói e sua futura mulher. Ele é todo rodado em estúdio e as batalhas envolvem apenas espadas. O segundo mostra maior ênfase na disputa de artes marciais que o motiva, trazendo mais à tona a questão pai/mestre-filho/discípulo do que a relação entre o herói e sua esposa. Algumas cenas são rodadas em locação. O terceiro, por sua vez, é eminentemente de ação, apresentando já alguns golpes de kung fu e mais cenas em locação do que o anterior. O grande foco de atenção passa a ser a relação de amizade entre dois heróis, mais do que o insinuado romance entre um deles e uma moça. Através dos três, podemos não apenas traçar o percurso de um personagem dividido em duas personas na filmografia de Chang Cheh, como observar nitidamente a progressiva passagem do diretor por diversos estilos de luta e diferentes estruturas fílmicas. Dois traços marcantes, porém, que atravessam estes três filmes e a filmografia do diretor como um todo são a vingança como dado inquestionável, os laços que unem lutadores, seja mestres a discípulos, sejam companheiros heróis, e a clara distinção entre utilizar as artes marciais para o bem e para o mal. Agindo em nome de uma causa digna, seja a proteção de alguém ou das populações das redondezas, a preservação da honra, própria, do mestre ou do clã, ou a vingança em nome de alguém a quem se deve lealdade, todo ato violento é totalmente justificado e plenamente endossado. As artes marciais são um grande meio para se fazer justiça, talvez o mais válido de todos. Se bem administradas, enobrecem o homem de justos intuitos.

One-Armed Swordsman conta a história de Fang Gang (interpretado por Wang Yu, uma das grandes estrelas lançadas por Chang Cheh). Seu pai morreu para salvar o mestre, que então adotou o pequeno Fang para criar e treinar. Já mais velho, ele sofria as provocações dos discípulos-irmãos por ser filho de um servente; estes acabam desafiando-o num acerto de contas que termina em tragédia. Pei-er, a filha do mestre, num gesto de raiva insensata, corta o braço direito de Fang. Delirante em sua dor, ele se afasta pela floresta, até uma ponte sobre um riacho; cambaleante, desmaia e cai num barco que ali passava naquele exato instante. Xiaoman, a moça que remava, leva Fang para casa e se ocupa dele. Logo cresce entre os dois um profundo afeto e a decisão de morarem juntos e ajudarem um ao outro. A mágoa de Fang pela perda do braço e conseqüentemente de sua vida como espadachim é duramente rebatida por Xiaoman, que também perdeu o pai em sacrifício pelo mestre. Com a mãe, ela aprendeu que as artes marciais se interpõem entre o homem e sua vida, que não devem ser louvadas porque sempre acarretam morte, em geral pela obrigação de honrar preceitos e responder a juras de lealdade. Todo esforço de Fang por desenvolver suas habilidades para seu braço restante com intuito de auto-proteção é visto com maus olhos pela moça, que defende firmemente sua posição de camponesa pacífica. Através de uma série de qüiproquós e movido por seu senso de vingança em nome da honra e de justiça, Fang acaba envolvido numa armação que visava destruir o clã do seu mestre e todos os seus discípulos. Contrariando Xiaoman, ele parte para defender o que acredita, em gesto notadamente humanitário. Com a espada cortada herdada do seu pai, Fang escapa da geringonça criada pelo clã inimigo para bloquear as longas espadas forjadas por seu mestre, salvando a este e a seus discípulos do extermínio. Mas tal ato de heroísmo não é seguido, ao contrário do que se poderia esperar, por uma volta ao seio da casa que lhe acolheu e fez dele um exímio espadachim, e sim por uma partida para o campo, ao lado de Xiaoman. São as regras do coração que comandam o filme; o afeto dispensado pela moça a Fang, sua dedicação em salvar sua vida e cuidar dele, mesmo com poucos meios, é o na verdade o grande ato heróico que merece admiração. E pelo reconhecimento de Fang, enorme é o peso que Xiaoman ganha no desenrolar da trama. Suas preocupações, seus sentimentos, suas palavras, são na verdade o motor que articula as ações do herói e o sentido do filme. É para protegê-la que ele incansavelmente treina seu braço esquerdo e desenvolve uma técnica própria e é por sua relação com ela que ele se vê enredado com o clã que ameaça o do seu mestre. Optando por seguir se envolvendo, como que absorto em obrigações que depassam sua vontade, Fang – e nós também – carrega consigo as preocupações de Xiaoman, de forma que toda a batalha travada parece uma batalha travada pela preservação de um amor.

The Return of the One-Armed Swordsman segue o mesmo princípio, mas apresenta-se de forma bastante diversa. As cenas de ação ganham mais destaque e no campo das motivações, a atenção à figura frágil da mulher e seus desejos pacifistas, recua um pouco para dar lugar a uma maior atenção à relação pai/mestre-filho/discípulo, que perpassa todo o filme, desde o drama enfrentado pelos clãs até a gravidez de Xiaoman.

Recluso, trabalhando em sua fazenda, Fang recebe um convite-convocatória de um grupo de oito guerreiros que quer, por meio de um amplo duelo, eleger o rei dos espadachins da região. Na verdade, seu intuito é destruir todos os outros clãs e poder reinar absoluto, sem entrevero para suas ações, dispondo das populações dos arredores como bem entenderem. Seguro da escolha feita para sua vida, Fang ignora o convite, até que recebe a visita de um chefe de clã preocupado, que lhe informa dos últimos acontecimentos envolvendo os tais oito demônios e advertindo-o que talvez participar do duelo não seja uma escolha, pois ele provavelmente será coagido. Fang prossegue em sua negativa, mas fica de sobreaviso. Os demônios seqüestram todos os mestres dos clãs, lançando uma chantagem aos mais novos: cortem seu braço direito, assumam a derrota e venham reclamar seus velhos. Desconfiados, eles resolvem buscar a ajuda de Fang, por conselho daquele mestre que o havia procurado antes. Fang preocupa-se e reconhece o valor da causa, lembrando que precisa consultar, antes de mais nada, sua mulher. Chegando em casa, não a encontra e descobre que um dos jovens a havia seqüestrado como forma de obrigá-lo a se engajar. Revoltado, Fang sai à procura da esposa. Encontrando-a, aprende que aquele seqüestro não havia sido um movimento coletivo, mas individual, e que o responsável já se encontrava morto pelo inimigo. É quando Xiaoman pela primeira vez contraria a disposição de Fang em sentido inverso: incentiva-o a ir lutar para salvar os pais/mestres aprisionados. Percebemos então que as motivações morais da personagem não são mais o eixo central do filme, elas cederam lugar ao senso de fazer justiça e restabelecer a paz a todos aqueles clãs/famílias. Aproveitando-se do fato de que não carrega mais seu braço direito, Fang adentra o castelo que servia de base aos demônios, fazendo-se passar por um jovem de clã vindo reclamar seu pai. Todos os outros jovens montam tocaia do lado de fora. Após uma intensa e espetacular batalha, uma forte cena: muitos dos pais libertados choram os corpos dos seus filhos, que ocupam todo o pátio. Fang, em primeiro plano, esboça expressão de profundo desagrado. Na comemoração noturna que segue a libertação dos mestres, Fang diz a Xiaoman que não pode festejar por cima de inúmeros corpos mortos. Mais uma vez a dimensão humana do herói vem à tona, reafirmando seu compromisso com valores outros que aqueles que habitualmente regem as artes marciais. Aprendemos que, no entanto, ele se tornou um mito no tempo em que se manteve totalmente afastado no campo. Seu nome ganhou grandes proporções e ele é admirado como herói de grande valor por todos os clãs, que forjam para ele uma medalha de ouro, para elegê-lo rei dos espadachins. Mas a medalha não desperta seu afeto, porque não traduz seu profundo desejo, que é poder satisfazer sua mulher com uma vida de paz. Mas Xiaoman nos surpreende mais uma vez: demonstra satisfação com a admiração dispensada ao marido herói. Fang não se convence e apenas demonstra grande alegria quando descobre que Xiaoman está grávida. Entregue à comemoração por um motivo que realmente muito lhe toca, Fang cuida de se manter alerta, pois sabia da grande possibilidade de sofrerem ataque durante a noite – um dos demônios ainda não tinha aparecido. Ele aparece e luta com Fang até de manhã, sendo finalmente derrotado. Tão logo terminada a batalha, Fang parte com Xiaoman, sem mais confraternizações com os clãs. Ele arranca do pescoço sua medalha de ouro e a atira no chão, pisando-a. Os sonhos do herói definitivamente não se materializam numa glória que pudesse ser obtida em batalhas e no caloroso reconhecimento de todos de uma perícia incontestável. Eles se desenham em devaneios com Xiaoman correndo entre os campos ao seu encontro, ao som de uma música angelical, primeiro sozinha, depois com seu futuro filho nos braços. Fang, herói não-usual, luta sanguinariamente, mas para preservar os sentimentos dos bons e suas relações interpessoais.

Em New One-Armed Swordsman, Chang Cheh reconfigura o personagem em uma outra história, apresentando no papel principal um ator que se tornaria uma de suas grandes estrelas: David Chiang. Neste filme, o foco muda do romance e da forte relação entre mestre e discípulo para outro ponto caro a Chang Cheh: o companheirismo e a forte relação de amizade entre dois homens. Lei Li, o novo "one-armed swordsman", é menos homem comum e bravo e mais homem heróico arrasado. Seu braço foi cortado por ele mesmo, ao cumprir uma aposta após perder um duelo com o chefe da Mansão Tigre, por ter sido enganado em uma tramóia. Ansioso por testar sua técnica especial contra o estilo "duas espadas" que Lei dominava, o tal chefe o desafiou, acusando-o de um roubo que ele mesmo havia cometido e posando de justiceiro. Conforme acertado, Lei se retirou do mundo das artes marciais e vive a amargura de não mais poder ser o que gostaria. Trabalhando como garçom em uma taverna, ele assiste a capangas da Mansão Tigre desfilarem grosserias e provocações, deixando transparecer seu mau-caratismo e mau uso das artes marciais. Mal suportando provocações por seu estado debilitado, Lei sai do sério quando assediam Ba Jiao, sua cliente costumeira e única amiga. Enfrentando os bandidos, ele toma cuidado para prosseguir ocultando seus conhecimentos de kung fu. É quando aparece em cena Fung, herói recém-chegado na cidade, dono da mesma técnica das duas espadas que Lei Li dominava. Fung logo entende o que se passa e intervém para ajudar. De sentidos aguçados, percebe claramente o que todos desconfiavam: Lei Li domina kung fu. Descobrindo então a identidade deste garçom habilidoso, Fung se espanta, deixando entrever a grande fama e admiração que Lei Li havia conquistado no mundo lá fora sem saber. Rapidamente os dois ficam muito amigos, até que Fung é convocado para um suspeito encontro de lutadores da região na Mansão Tigre. Ele vai e lá é brutalmente assassinado. Lei Li parte para vingar o amigo, derrotando, de forma descomunal, um exército considerável de homens, até chegar ao chefe que havia provocado a perda do seu braço. A tal técnica para bloquear o estilo "duas espadas", que havia causado sua derrota e a de Fung, não mais tem efeito, pois o herói só tem um braço e uma habilidade admirável de malabarista. Ocupando o inimigo com duas espadas lançadas ao ar, ele pega uma terceira e o atravessa, de acordo com a fala de Fung antes de morrer: "se eu tivesse três espadas eu o derrotaria". Lei Li então honra Fung e vinga sua morte, fazendo justiça também em relação à sua própria derrota de anos atrás e limpando o mundo de um grupo que utilizava as artes marciais para propósitos escusos.

A espada curta no primeiro filme, a ausência de um braço no segundo e as técnicas desenvolvidas para suprir a falta do segundo braço no terceiro filme. É sempre a exepcionalidade do "one-armed swordsman" que o torna um herói, que o destaca dos outros e o possibilita vencer quando ninguém mais pode. É seu senso de dever e sua humanidade, com uma ligeira desconfiança de quem leva as artes marciais muito a sério, que faz dele um herói admirado. Por tudo isso, o personagem do "one-armed swordsman" de Chang Cheh, tanto na encarnação de Fang Gang quanto da de Lei Li, é extremamente cativante. Em sua reclusa intensidade, suas preocupações se mostram deslocadas daquelas de um espadachim comum, seus sentimentos filtrados pela experiência de pertencer a um mundo próprio, trágico, distinto daqueles que possuem dois braços e não carregam nas costas uma triste história. É um herói que não quer ser herói, que não deseja a ovação nem a glória de salvar vidas, mas que tem consciência de seu dom único e de como ele pode influir no curso dos acontecimentos à sua volta. Sendo capaz de salvar uma vida ou de honrar o senso de justiça profundo e carregado que porta um bom espadachim, ele se desvia brevemente de seu curso pacífico quando necessário, em nome do que considera humano.


Tatiana Monassa

 

 






Wang Yu em Return of the One-Armed Swordsman (1969)