OBSESSÃO
Luchino Visconti, Ossessione, Itália, 1943

Uma câmera colocada diante da janela de um caminhão abre Obsessão. Na carroceria deste veículo, saberemos segundos depois, está o protagonista, Gino (Massimo Girotti), um homem em deslocamento, gerador de conflitos no lugar onde chega, desmobilizador da repetição, do formato padrão do comportamento social, em suma, um ser em constante movimento e mudança. Nesse início, a trilha sonora associada às representações de situações tensas e de alto teor de perigo para os personagens nos dá a pista: estamos sendo colocados em uma leitura italiana de um gênero americano, o romance criminal de James M. Cain, The Postman Always Rings Twice. E a novidade, nesse gênero propagador de tensão e revelador de índoles, é sempre desorganizadora. Pode gerar transformações ou causar ruínas. Ou simplesmente abalar a continuidade de um processo apenas para reafirmá-lo como punição mais adiante.

Visconti, tantas vezes chamado de decadentista (de forma pejorativa), já nas primeiras imagens revela seu ceticismo agudo. Nenhum projeto de mudança será bem sucedido. E assim permanecerá em seus filmes e nas décadas seguintes, com personagens sempre perdendo o round para sua circunstância histórica, ou perdendo seus amores, ou perdendo a vida ou seus ideais de progresso (o final de A Terra Treme). Dias melhores não surgem em Visconti, e uma figura ameaçadora da ordem, como Gino (Massimo Giroti), o forasteiro, acaba se tornando vítima (presa fácil de um sistema social e de um destino imobilizador).

Em suas primeiras imagens no cinema, Visconti evidencia as regras da operação. Coloca aspas em alguns planos para destacá-los como momentos chaves, geralmente aqueles definidores de um início ou de uma ruptura de alguma nova situação na vida dos personagens, ali tratados como sinais de um destino torto. Esse expediente está explícito na utilização da grua para mostrar a chegada do viajante-protagonista Gino diante da porta do restaurante de estrada (local de seu paraíso efêmero e da eternização de seu inferno), nos movimento de seus pés seguidos por cachorros quando entra no estabelecimento e no enquadramento de apresentação dele à esposa do dono do lugar, Giovanna (Clara Calamai, chamada para substituir Anna Magnani, que engravidou).

A cena: ele de costas para nós, parado na porta da cozinha, ela só nos dando a ver as pernas, esticadas diante do corpo dele. É certamente uma das mais engenhosas sucessões de planos em todo o Visconti, mas ainda assim inferior à da revelação do ato sexual entre os amantes imediatos Gino e Giovanna, revelação realizada pelo enquadramento de um espelho no qual ele olha para fazer a barba e onde está refletida a imagem dela ao fundo na cama.

Nessas passagens sublinhadas, sabemos estar diante de uma construção dramática, que, independentemente do tipo de acontecimento e de representação de símbolos sociais, vale-se de uma aposta no acaso-místico de origem trágica – nos deuses que desviam, nos deuses que punem, no acaso que descarrila. Os homens são vistos como impotentes diante de seus destinos – e conseqüentemente das prisões sociais nas quais estão condenados pelo imobilismo social (algo ainda mais gritante em A Terra Treme, com seu final de retorno ao início). Há uma lógica histórica ou divina, injusta que seja, da qual os personagens não escapam. E interessa a Visconti o momento em que tentam escapar sem conseguir, ou aqueles nos quais flertam com a ruína por ter expirado o prazo de validade de suas condições (O Leopardo, Morte em Veneza, Violência e Paixão). A derrota é a única certeza a aguardar os seres viscontianos.

Os ambientes

A câmera move-se suave pelos ambientes, aproxima-se dos rostos, segue os atores pelos espaços, revelando o meio deles progressivamente, sem acentuar o olhar descritivo, e colocando os objetos em cena e a geografia doméstica como parte dos acontecimentos, não como papéis de parede ou cenários de teatro. Essa integração entre acontecimentos e lugares, entre personagens e ambientes, nem sempre disfarça sua proposta de uma antropologia por fragmentos sintéticos.

Exemplo: a longa seqüência de concurso de dança, durante a qual o filme relativiza o julgamento moral sobre um personagem estigmatizável (patrão, gordo, marido opressor), mas principalmente descortina um ritual de um determinado lugar e de uma classe social específica, descrevendo lentamente características de uma feira de variedades, em torno da qual a comunidade satisfaz a demanda por circo e integração no grupo – comuns a toda sociedade.

Em seus filmes posteriores, a começar pelo seguinte (A Terra Treme), a operação de situar personagens em seus meios, usando-os como guias em um tour pelo entendimento de alguns mecanismos da sociedade, encontrará um desafio em geral cumprido: o de mantê-los vivos como personagens, sem serem reduzidos a símbolos, sintomas e ilustrações de um sociólogo sem pesquisa de campo – embora em A Terra Treme, nesse sentido, o desafio não se cumpre.

Os personagens

Gino entra em cena com desprezo pelo dono do lugar e com olhos de cobiça para a esposa dele. Age como ameaça aos limites mediadores (do desejo principalmente), um sujeito sem nada a perder, sem os medos de quem possui algo, sem o espírito da burguesia. Sua representação tem como imagem um macho viril e erotizado, em camisetas sem mangas e com a pele sempre suada, com indícios de ser capaz de prover a mulher com as habilidades de seu corpo (o sexo e as atividades mecânicas, um ser eficiente como macho e marido). O desejo pela "dona", Gabi, o manterá por ali. Joga a âncora temporariamente. Adere a um certo status quo (projeto de família, trabalho), embora pela transgressão dele (adultério).

Giovanna, a dona arfante, cheia de lamentos e ambições, com sexualidade represada em vias de explodir, apresenta-se como uma explorada, uma escrava de seu marido, casada por necessidade material, porém, como veremos adiante, oportunista e conformista nessa condição. Seu drama é originário da desvinculação entre o provedor e o amante. A circunstância social da guerra a jogou para a cama do marido – e da cama para a condição mínima de vida proporcionada pela carteira dele – a da baixa burguesia de uma região italiana de couro surrado, o Vale do Pó. Giovanna encontra no forasteiro Gino o ideal romântico de um idílio utópico e sem lugar em sua realidade despida de floreios. Entre o suspiro romântico e o gesto pragmático, ela fará a opção pela manutenção, não pela mudança. É uma insatisfeita, mas, como tal, conservadora. Resiste à idéia de fugir para viver em deslocamento e sem garantias financeiras e de moradia. Quer riscos assegurados - uma reforma, não uma revolução. Quer a condição burguesa, pois o espírito já possui.

Mas, sendo este um filme elaborado com os olhos no noir americano, não podemos perder de vista como a indecisão e o oportunismo dessa femme-fatale popular e latina também serve para lhe dar uma imagem postiça e indigna de confiança – como a das fêmeas libidinosas e manipuladoras do noir americano. Ela é, então, fruto de uma condição social, uma "desgraçada", segundo suas palavras (porção melodrama de um trecho do filme), e também de uma imanente ambigüidade (às vezes com sinais de desequilíbrio e falhas de caráter bastante destacados). É a personagem mais questionada pelo olhar de Visconti

E temos o proprietário-marido gordo e grosseiro, Giuseppe (Juan de Landa), que, se a princípio parece perfeito para carregar nas costas a tarefa de vilão capitalista e assim legitimar seu assassinato pelos amantes marginais-explorados, logo demonstra sutilezas relativizadoras. O opressor é querido na comunidade, afável com muitas das pessoas (dentro dos limites de seu jeito bronco) e tem sensibilidade artística (ovacionado em concurso de canto). No fundo, é um ignorante, incapaz de ver o óbvio: que a mão a que estendeu a sua para oferecer ajuda é a mesma que conduz sua esposa à cama e depois o ataca para ficar com ela e com parte do dinheiro – as duas posses do personagem morto.

Após a aproximação dos amantes e a tentativa frustrada de fuga, Visconti acompanha apenas o forasteiro Gino, novamente de volta à estrada e rumo a direções indefinidas, outra vez sem projeto. Nessa opção por Gino, não por Giovanna, Visconti hierarquiza seu interesse. Ao nos colocar ao lado de Gino, após nova ruptura e deslocamento, ele deixa de ser o forasteiro (segundo olhar de quem está no lugar e não de quem chega a ele), tornando-se o deslocado em busca de inserção provisória. Visconti detém-se no encontro e na intimidade de Gino com outro viajante, Spagnollo (Elio Marcuzzo), artista de rua, ex-combatente da guerra civil espanhola, com quem divide cama (sem sexo à vista) e uns trocados. Muito já se escreveu sobre o caráter homossexual e político dessas passagens de convivência entre Gino e Spagnollo, cortadas quando do lançamento em cinema, mas os trechos incluídos na cópia em DVD evidenciam a atmosfera homoerótica e só descortinam um pouco do simbolismo político.

De qualquer forma, Spagnollo, além de ser mais um anunciador dos deterministas sinais místicos-trágicos aos quais o filme está ligado (ele tira a sorte para o companheiro antes deste ir ao encontro da amante e do marido dela), é um marginal militante. Ao deixá-lo para engendrar um plano de assassinato, que libertará Giovanna e levará os amantes ao paraíso burguês (na idealização do futuro por eles), Gino opta por uma segunda transgressão (após o adultério, o assassinato), mas esta o levará ao status quo (para substituir o eliminado).

Essa inserção dele no baixo-establishment ganha tratamento de melodrama estudioso de caráter. Surgirá uma segunda mulher (uma bailarina, artista, como Spagnollo), conflitos de consciência da parte dele, confissão de amor da parte de Giovanna e, finalmente, para inviabilizar a redenção dos amantes criminosos, a mão do acaso intervém no plano deles (o de unir sexo-instinto-paixão e sociedade-negócios no amor-casamento burguês). Os sinais do destino contra Gino e Giovanna, jogados aqui e ali na narrativa, são confirmados pela condenação deles por terem fracassado no projeto de mudança – ou por terem ambicionado a mudança? Como intelectual de esquerda, Visconti era de um racionalismo de agudo ceticismo. E o castigo imposto a seus personagens, ambíguos o tempo todo enquanto símbolo moral, atenua o potencial demolidor.


Cléber Eduardo

(DVD Versátil)