Minha Bela Dama
de George Cukor, My Fair Lady, EUA, 1964

Professor Higgins (Rex Harrison) é um pesquisador dos diversos sotaques da língua inglesa, com certo desdém por aqueles que, segundo ele, empobrecem a nobre língua graças às mudanças fonéticas praticadas na região de onde vieram. É capaz de distinguir o sotaque dos diversos bairros londrinos, às vezes de ruas específicas. É também um jogador nato, o que faz com que se refastele com a possibilidade de dar bons modos a uma florista inculta e grosseira, o que é encarado como um desafio. Despreza os aculturados, sendo portanto, pelo menos à primeira vista, um personagem antipático.

Eliza Doolittle (Audrey Hepburn) é a florista, que um dia descobre, graças ao professor Higgins, que seu linguajar é chulo e indigno. Inculta, mas perseverante, ela vai atrás de conhecimento, batendo na porta do professor e oferecendo seus pobres centavos em troca de umas aulas. Quer saber falar e agir como uma dama. Sua transformação, que parecia impossível, se dá em um estalo. Um lampejo, que lhe permite mudar de status social. De uma hora pra outra ela é capaz de impressionar nobres em um baile real, assim como enganar um outro pretenso expert em sotaques. Era e continuou sendo uma personagem simpática, portanto.

Higgins é um solteirão convicto. Sabe que sua pompa britânica iria por terra diante de uma mulher que o conquistasse. Eliza é, como manda a cartilha, uma moça sonhadora, que quer ter uma duradoura relação com seu príncipe encantado (posição que pode, por oportunidade, ser ocupada pelo professor). O previsível acontece e eles irão se envolver, mas essa previsibilidade, longe de abalar o encanto do filme, deixa-nos livres para apreender melhor as nuances que o diretor Cukor soube trabalhar muito bem.

Em primeiro lugar, temos o musical, e como esse filme dialoga com os outros filmes do gênero. Talvez o ponto de contato mais próximo, excetuando Les Girls, do mesmo diretor, seja a obra-prima de Vincente Minelli, Agora Seremos Felizes. Em ambos a música surge como comentário do que se passou, mas sem o deslumbramento imagético e o nonsense dos filmes de Stanley Donen e mesmo dos filmes posteriores de Minelli, ou as fulgurantes coreografias de Busby Berkeley. Agora Seremos Felizes é considerado o primeiro musical onde a música surge como parte integrante da trama do filme. Seus raros números musicais comentam o que se passa e fazem avançar a narrativa. My Fair Lady, feito vinte anos depois, vai mais longe e usa os números musicais como contraponto irônico da ação. Há, principalmente, uma preocupação em delinear os personagens através das canções. O que vemos no restante do filme são personagens filtrados pelo ponto de vista de Eliza. Assim, só temos uma visão objetiva do Professor Higgins quando ele canta, ou melhor, fala cantando, sem a presença de Eliza em cena. Só aí vemos como é sua verdadeira personalidade. O mesmo se dá com os outros personagens cantantes. Existem sempre dois pontos de vista que dão conta do que é contraditório no ser humano. E Cukor trabalha muito bem a exploração dessa dicotomia.

O comentário social e sarcástico, especialidade do diretor, não é abandonado. Um belo exemplo é a seqüência das corridas de cavalo, na qual os ricaços cantam como estátuas, e cavalos borram a tela. Um momento estranho ao próprio filme, mas que tem tudo a ver com o cinema de George Cukor. Um delírio filmado com artificialismo (cenário descaradamente irreal, como se existisse em uma outra dimensão) e irreverência (no meio da seqüência, Higgins equilibra uma xícara em sua cabeça). Um dos grandes momentos do filme.

Eliza não é desmascarada durante as corridas. Pelo contrário, ganha até um admirador, o que sugere que nesse momento em específico vemos se confirmar a submissão da objetividade narrativa à visão romantizada de Eliza. É ela que comanda, a não ser no momento final da seqüência, quando ela torce para o cavalo: "Move your blooming arse". Frase que leva o professor e os presentes do choque ao desespero.

Mas o pretendente continua firme e forte. Em sua canção, temos mais um exemplo de apropriação operada por Cukor. Desta vez a ordem é a zombaria. A rima seria "and I never saw a more enchanting farce" com "move your blooming arse". Mas o "arse" é calado pela governanta que abre a porta. O pretendente é o apaixonado galanteador como visto por Eliza durante as corridas, ou um trouxa que aceita ser enganado e pagar um mico virando poste na rua à espera dela, como o visto no número musical?

E não deixa de ser interessante que um outro filme, presente nas canções, lute para se fazer soberano. É desse embate que o filme tira sua força. Como na cena do telefone sem fio durante o baile real, que termina com a sonora risada de Higgins. A música acompanha a mensagem sendo levada de um nobre a outro, e que chega ao conhecimento do professor como um fonema dissonante. A mentira será perpetuada. A risada de Higgins nos leva à cena seguinte, quando todos comemoram, cantando, o brilhante feito. Não percebem que Eliza está triste, por não ter seus méritos reconhecidos. Ela não canta, não faz parte da festa. Para ela, tudo foi um excelente aprendizado, e o despertar de um relacionamento. Para ele, apenas mais uma prova de sua genialidade.

O filme assume o ponto de vista de Eliza. O próprio título já sugere um ponto de vista fantasioso. Nos créditos iniciais só o que se vê ao fundo são flores, preferencialmente margaridas. Ela tem até direito a um final belíssimo e que diz tudo sobre sua superioridade emocional. Um belo fade-out, com o casal disposto no quadro de maneira a conduzir nosso olhar para ela. Ela, afinal, foi a grande estrela da farsa.

Sérgio Alpendre