Professor Higgins (Rex Harrison)
é um pesquisador dos diversos sotaques da língua
inglesa, com certo desdém por aqueles que, segundo
ele, empobrecem a nobre língua graças
às mudanças fonéticas praticadas
na região de onde vieram. É capaz de distinguir
o sotaque dos diversos bairros londrinos, às
vezes de ruas específicas. É também
um jogador nato, o que faz com que se refastele com
a possibilidade de dar bons modos a uma florista inculta
e grosseira, o que é encarado como um desafio.
Despreza os aculturados, sendo portanto, pelo menos
à primeira vista, um personagem antipático.
Eliza Doolittle (Audrey Hepburn)
é a florista, que um dia descobre, graças
ao professor Higgins, que seu linguajar é chulo
e indigno. Inculta, mas perseverante, ela vai atrás
de conhecimento, batendo na porta do professor e oferecendo
seus pobres centavos em troca de umas aulas. Quer saber
falar e agir como uma dama. Sua transformação,
que parecia impossível, se dá em um estalo.
Um lampejo, que lhe permite mudar de status social.
De uma hora pra outra ela é capaz de impressionar
nobres em um baile real, assim como enganar um outro
pretenso expert em sotaques. Era e continuou sendo uma
personagem simpática, portanto.
Higgins é um solteirão
convicto. Sabe que sua pompa britânica iria por
terra diante de uma mulher que o conquistasse. Eliza
é, como manda a cartilha, uma moça sonhadora,
que quer ter uma duradoura relação com
seu príncipe encantado (posição
que pode, por oportunidade, ser ocupada pelo professor).
O previsível acontece e eles irão se envolver,
mas essa previsibilidade, longe de abalar o encanto
do filme, deixa-nos livres para apreender melhor as
nuances que o diretor Cukor soube trabalhar muito bem.
Em primeiro lugar, temos o musical,
e como esse filme dialoga com os outros filmes do gênero.
Talvez o ponto de contato mais próximo, excetuando
Les Girls, do mesmo diretor, seja a obra-prima
de Vincente Minelli, Agora Seremos Felizes. Em
ambos a música surge como comentário do
que se passou, mas sem o deslumbramento imagético
e o nonsense dos filmes de Stanley Donen e mesmo dos
filmes posteriores de Minelli, ou as fulgurantes coreografias
de Busby Berkeley. Agora Seremos Felizes é
considerado o primeiro musical onde a música
surge como parte integrante da trama do filme. Seus
raros números musicais comentam o que se passa
e fazem avançar a narrativa. My Fair Lady,
feito vinte anos depois, vai mais longe e usa os números
musicais como contraponto irônico da ação.
Há, principalmente, uma preocupação
em delinear os personagens através das canções.
O que vemos no restante do filme são personagens
filtrados pelo ponto de vista de Eliza. Assim, só
temos uma visão objetiva do Professor Higgins
quando ele canta, ou melhor, fala cantando, sem a presença
de Eliza em cena. Só aí vemos como é
sua verdadeira personalidade. O mesmo se dá com
os outros personagens cantantes. Existem sempre dois
pontos de vista que dão conta do que é
contraditório no ser humano. E Cukor trabalha
muito bem a exploração dessa dicotomia.
O comentário social e
sarcástico, especialidade do diretor, não
é abandonado. Um belo exemplo é a seqüência
das corridas de cavalo, na qual os ricaços cantam
como estátuas, e cavalos borram a tela. Um momento
estranho ao próprio filme, mas que tem tudo a
ver com o cinema de George Cukor. Um delírio
filmado com artificialismo (cenário descaradamente
irreal, como se existisse em uma outra dimensão)
e irreverência (no meio da seqüência,
Higgins equilibra uma xícara em sua cabeça).
Um dos grandes momentos do filme.
Eliza não é desmascarada
durante as corridas. Pelo contrário, ganha até
um admirador, o que sugere que nesse momento em específico
vemos se confirmar a submissão da objetividade
narrativa à visão romantizada de Eliza.
É ela que comanda, a não ser no momento
final da seqüência, quando ela torce para
o cavalo: "Move your blooming arse". Frase que leva
o professor e os presentes do choque ao desespero.
Mas o pretendente continua firme
e forte. Em sua canção, temos mais um
exemplo de apropriação operada por Cukor.
Desta vez a ordem é a zombaria. A rima seria
"and I never saw a more enchanting farce" com "move
your blooming arse". Mas o "arse" é calado pela
governanta que abre a porta. O pretendente é
o apaixonado galanteador como visto por Eliza durante
as corridas, ou um trouxa que aceita ser enganado e
pagar um mico virando poste na rua à espera dela,
como o visto no número musical?
E não deixa de ser interessante
que um outro filme, presente nas canções,
lute para se fazer soberano. É desse embate que
o filme tira sua força. Como na cena do telefone
sem fio durante o baile real, que termina com a sonora
risada de Higgins. A música acompanha a mensagem
sendo levada de um nobre a outro, e que chega ao conhecimento
do professor como um fonema dissonante. A mentira será
perpetuada. A risada de Higgins nos leva à cena
seguinte, quando todos comemoram, cantando, o brilhante
feito. Não percebem que Eliza está triste,
por não ter seus méritos reconhecidos.
Ela não canta, não faz parte da festa.
Para ela, tudo foi um excelente aprendizado, e o despertar
de um relacionamento. Para ele, apenas mais uma prova
de sua genialidade.
O filme assume o ponto de vista
de Eliza. O próprio título já sugere
um ponto de vista fantasioso. Nos créditos iniciais
só o que se vê ao fundo são flores,
preferencialmente margaridas. Ela tem até direito
a um final belíssimo e que diz tudo sobre sua
superioridade emocional. Um belo fade-out, com o casal
disposto no quadro de maneira a conduzir nosso olhar
para ela. Ela, afinal, foi a grande estrela da farsa.
Sérgio Alpendre
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