MORTE EM VENEZA
Luchio Visconti, Death in Venice, Itália/França, 1971

A morte. Ela quase sempre chega sem ser anunciada. Bruscamente, num rompante violento e súbito, ou sem ser percebida, de mansinho, se instalando pé ante pé. Degrada o corpo e o espírito, esfacela a dignidade do ser, levando-o a profundidades nunca antes imaginadas.

Aschenbach era o melhor que a cultura européia poderia ter produzido. Músico de primeira linha, cidadão da mais alta estirpe, portador de um título de nobreza e profundo conhecedor de uma ampla cultura. Bem diferente do burguês de plantão, ele sabia a importância das artes e o valor de uma vida dedicada ao incansável labor em busca da forma perfeita, aliando de maneira talvez proibida arte e ciência. Acreditava poder atingir a beleza e o sublime trabalhando sem descanso e se dedicando com persistência incansável ao cultivo de uma obra impecável, renunciando de toda a forma à lassidão e aos prazeres mais banais. Mas eis que o imponderável golpeia seu trajeto acertado e sua postura alinhada: de férias para recuperar seu fôlego criativo e animar seu corpo frágil, ele encontra a manifestação terrena da mais intocada beleza imaginada.

Humano e sensível, Aschenbach não pôde renunciar a ela para manter sua integridade e superioridade moral, como talvez tivesse feito Sócrates em suas palavras a Fedro. Artista que era, não poderia negar tal apelo nem com o mais científico dos esforços. Estivesse ele perto de sua casa, em território cativo, quem sabe teria se segurado em tudo que lhe era mais caro e firme, tudo aquilo que havia tão duramente construído ao longo da vida e que estaria ali, a lhe oferecer porto seguro... Mas era Veneza. As águas flutuantes entre as vielas labirínticas, fizeram Aschenbach cambalear e se deixar levar, perdendo-se nos enlevos de seus próprios desejos proibidos, de seus próprios interesses sufocados. Se apaixonou como o mais ingênuo adolescente que nunca se permitiu ser. Se rebaixou, assim, de mansinho, do mais louvável posto em que se encontrava. Se deixou definhar, na vontade mais ardente de se entregar de corpo e alma a um sentimento, como por toda a sua vida havia se proibido de fazer. Se entregou, por fim, a uma devotada relação platônica de admiração de uma beleza divina e ignorância das leis físicas que regem o mundo.

Obstinado em seu intuito ordenador, ele nunca gostaria que algo fugisse à sua programação, tomando rédeas próprias. Seu corpo debilitado nunca poderia responder à altura de seu esforço intelectual e, agora que envelhecia, sentindo o peso inexorável do tempo que escorre na ampulheta, atirado no mais inconcebível turbilhão emocional, é mesmo que não se permitiria romper a espessa barreira invisível entre si e os outros. Assistindo tudo de longe, amando à distância, em idéia, Aschenbach progressivamente mergulha em decadência. Vê se corromper sua imagem de grande homem, perde a medida das coisas, se acredita dono da realidade que apreende com os olhos e processa com a mente. Os longos zooms de Visconti dão a exata dimensão da distância a que ele se encontra de tudo – imagens passadas, objeto amado – e de como tudo isto passa a existir extremamente próximo e vivo para ele, que experimenta um processo de introspecção cada vez maior. Tudo aquilo tornado tão familiar e tão intimamente conhecido, na realidade, não se compartilhava com ele. Levava uma existência própria, para muito além dos limites do quadro, recorte de uma atenção vidrada desejosa de tudo capturar. Administrava a si mesma, inapreensível, ignorante daquele homem aprisionado por milhões de desígnios insondáveis de si para si mesmo, não fosse por sua presença constante, numa quase onipresença nos espaços ocupados pela família polonesa do rapaz Tadzio. A câmera, que vai e vem, que se esgueira por trás das colunas da cidade e entre os mil atrativos que povoam o hotel, busca uma cumplicidade com esta sensação de progressivo afastamento do mundo, tentando avistar ou entender este prodigioso homem, cuja silhueta famosa e conhecida vai se perdendo, dando lugar a um escravo do olhar.

Morte em Veneza é, sem dúvida, um filme de ponto de vista. Encenado pelo olhar de Aschenbach e medido por aproximações e afastamentos de acordo com sua percepção do que o cerca, ele constrói de início uma atmosfera descritiva, que vai dando lugar ao recorte privilegiado de Aschenbach das particularidades do local. Se sua panorâmica de turista recém-chegado captava muito do ambiente do Hotel de Bains e da praia do Lido, logo sua atenção está fixada em seu objeto de adoração apaixonada, o Belo, o rapaz Tadzio e tudo o que o rodeia. Em cada gesto medido de Aschenbach é possível ver o detalhismo de Visconti e sua adesão ao original de Thomas Mann. O que era extensa descrição psicológica e sentimental naquele, ele transforma em devotada expressão pictórica, compondo quadros e movimentos de câmera ensaiados à perfeição, como é possível ver no curto, mas excelente, extra de DVD "A Veneza de Visconti". Nele, temos acesso a uma breve visão do processo criativo do diretor, que demonstra manifestar grande amor por seus personagens, a ponto de nunca negar-lhes a imagem, concedendo-lhes, ao contrário, num esforço perfeccionista, sempre a melhor imagem. E como prova da contaminação do filme por seu objeto, podemos ver a contenção de Aschenbach, por um lado, e sua fixação apaixonada, por outro, pautarem Morte em Veneza do início ao fim. Visconti afirma ter transformado o personagem de Mann de escritor em músico para ser mais fiel ao intencionado pelo próprio autor, que era se aproximar, de alguma forma, da figura do compositor Mahler. Não à toa, Mahler musica veementemente todo o filme. Se Mann manifestava sua profunda compreensão dos dilemas intelectuais-artísticos de seu personagem através da sua própria escrita, Visconti a manifesta através da trilha sonora e da transposição de um personagem extremamente psicologizado para um personagem eminentemente visual. Não acessamos Aschenbach por uma detalhada descrição do seu interior, mas pela observação dos gestos e expressões precisos de Dirk Bogarde e pelo acompanhamento intensivo da música de Mahler.

Dessa forma, vamos acompanhando, em progresso imperceptível, a morte de Aschenbach, embebido da paisagem de Veneza e consumido pela obsessão de perfeição e beleza. Tudo aquilo que ele mais prezava ali, presente demais para um homem já tão fragilizado e debilitado pelo avanço do tempo em seu corpo e seu espírito, tornou inviável o restante do percurso. Ele havia atingido o ponto crítico. Seu modo de vida havia saturado sua própria vida. E o que poderia tê-lo feito recarregar suas energias, seus valores e suas crenças, para caminhar rumo aos seus últimos anos, o fez entrar em colapso e determinou uma impossibilidade de progredir.

Aschenbach morre. Contaminado por sua cidade amada, impregnada de peste asiática, e por seu adorado objeto de veneração, envolto por uma distância intransponível em que apenas massacrantes joguinhos sedutores têm espaço. Mergulhado em delírios e febres próprias de quem é atingido por grave infecção do corpo ou da alma, ele abraça o declínio, transformando-se no patético velho vestido de manequim pasteurizado de homem jovial, que ele mesmo repugnava. Desfalece por fim na praia deserta de turistas evadidos pela peste, no palco que assistiu sua lenta decadência, frente à imagem de seu ídolo venerado, que na mais bela pose de Deus, aponta o infinito, coberto por centelhas de luz emitidas pelo mar que reflete a cegueira emitida pelo sol. Permanecemos nós, com a estupefação de ter presenciado um amor muito intenso sem nenhuma troca efetiva, uma vida tão bem estruturada e tão altiva se esfacelando ante o mais banal, um filme tão belo sobre algo tão horrível...


Tatiana Monassa

(DVD/VHS Warner)