GAROTAS DO ABC (AURÉLIA SCHWARZENEGA)
Carlos Reichenbach, Brasil, 2003

Uma das principais restrições ao filme dentre as feitas pelos não-apreciadores de Garotas do ABC seria que este não atingiria a mesma "intensidade" de Anjos do Arrabalde (1987), incursão anterior do diretor Carlos Reichenbach em um universo semelhante, o das mulheres proletárias, habitantes da periferia de São Paulo. Só que, ao fazer tal afirmação, esses detratores parecem ignorar a diversidade nas propostas de ambos os filmes. Se o filme de 87 é um retrato crú e desglamurizado, realizado com fortes cores néo-realistas, Garotas do ABC – concebido como o piloto de uma série e fruto de um projeto que foi ao longo do tempo mudando de cara diveras vezes e cuja idéia surgiu não coincidentemente logo após a conclusão de Anjos do Arrabalde – parte muito mais de uma visão pessoal do próprio Carlão. Como ele mesmo afirma: "Nunca pretendi realizar com esses filmes um tratado sociológico sobre o assunto, mas trabalhar o meu imaginário a respeito do universo feminino (...)".Foge, portanto, de uma abordagem quase documental que poderia impor ao seu realizador uma necessidade de reprodução do real. Isso se estende também ao trabalho dos atores, que por essas razões foge aos limites de um "naturalismo televisivo", considerado como equivocado parâmetro para avaliação de atuaçoes por um certo senso comum.

Visto sob esse prisma, e considerando-se o fato de que, o filme não pretende esgotar os universos de suas personagens, que, ao menos em tese, deveriam retornar em episódios subseqüentes, Garotas do ABC consegue concretizar de forma mais que satisfatória – por que não dizer, por vezes brilhante – as intenções de seu autor. Se a idéia original era retratar um grupo de operárias de uma indústria têxtil, fêz-se opção dramatúrgica priorizar uma delas (no caso a jovem, bela e negra Aurélia) e esta serve de forma eficiente, pela força e simpatia da personagem, de ponte para introduzir o espectador no mundo onde tais moças vivem, trabalham e se divertem. Carlão parte do pressuposto que a vida pobre das personagens não seria um poço de sofrimentos ou o reservatório de males infinitos. Como para qualquer um, temos um misto de alegrias e tristezas e isso fica claro logo nos primeiros minutos com a apresentação da família de Aurélia (Michelle Valle). Se há uma força rígida e repressora, representada pelo pai (Antônio Pitanga), fica caracterizada também a união e o amor inerentes desse núcleo. A própria Aurélia, uma moça de temperamento forte, ousado, dotada de sexualidade franca e poucas papas na língua, tem também seu lado "menina" muito intenso, haja visto seu deslumbramento adolescente por homens musculosos – incorporados na figura de Arnold Schwarzennegger – que a leva a apaixonar-se pelo torturado fascistóide Fábio (Fernando Pavão), com quem ela pouco ou nada tem em comum.

O retrato afetuoso e multifacetado prossegue na fábrica. Mesmo não sendo de todo aprofundadas ao longo do roteiro, não somente as operárias, mais a maioria das personagens tem seu lado de intensa humanidade, e como esta são sempre complexas e contraditórias. Tais figuras, muitas dessas pouco mais que esboçadas durante o filme, são dotadas de um potencial dramático que trazem o desejo de que realmente Reichenbach tenha oportunidade de levar a frente seu projeto e retornar a elas. E também a personagens masculinos, como o jornalista Nelson Torres (Ênio Gonçalves, na atuação mais marcante do filme) e o policial Sampaio (Adriano Stuart), que fogem a uma composição maniqueísta e deixam transparecer uma certa promiscuidade entre o triângulo imprensa-polícia-crime.

Esta humanização prossegue na forma íntima como as operárias tratam suas máquinas, nomeadas através de números, e se reflete em imagens na forma como diretor percorre com suas câmeras o espaço da fábrica, mostrando os teares numa dança cadenciada, indício inequívoco de sua paixão pelo mundo que retrata. Tendo isso em vista, há que se destacar a forma como Reichenbach e sua câmera dominam e se integram aos espaços que percorrem. Não somente a fábrica, mas os demais cenários como o salão de sinuca, os bares, as ruas e principalmente o Clube Democrático são explorados com uma intensidade e criatividade únicas. E mesmo que sejam feitas ressalvas quanto a uma utilização excessiva de travellings em 360º, não podemos esquecer que Garotas do ABC é um filme de encenação extremamente elaborada, com planos e movimentos de câmera matematicamente concebidos por um cineasta que domina mais que nenhum outro em atividade atualmente no Brasil a linguagem e os recursos cinematográficos. E que não nega que sua mise-en-scène carrega a influência, mesmo que inconsciente, do mestre Fritz Lang.

Uma atenção especial deve ser direcionada à personagem Salesiano de Carvalho (Selton Mello) e a seu grupo neo-fascista. Apesar de nunca minimizar o risco representado por tais figuras, o filme não deixa de destacar o absurdo e o ridículo por tráz deles. Dotado de condição financeira privilegiada e formação universitária, Salesiano vai encontrar eco a suas idéias elitistas e discriminatórias somente entre seus companheiros derrotados do salão de sinuca: um nerd recalcado, dois operários desempregados e de cabeça fraca e um neurótico depressivo. E mesmo esses o vêem como um descontrolado, um loose cannon, como dizem os americanos. Carlão por vezes os retrata de forma quase cômica –os operários aparecem se estapeando como os Três Patetas – mas essa utilização de humor é uma forma de escarnecer tais personegens através do deboche, dentro de um espírito "anarco-libertário" que o diretor proclama para seu filme. Esses não deixam de ser apresentados como um bando de incompetentes, haja visto a forma como são praticamente enxotados em sua invasão ao Clube Democrático. Mas mesmo debochando, o cineasta não deixa de estar atento à ação nociva de tais grupos e a sua proliferação com um discurso que se apropria da intensificação das diferenças sociais para difundir o ódio.

Voltando à proposta original de Carlão, no universo das Garotas do ABC nem tudo é trabalho e violência. O filme é conscientemente dividido em dois tempos: o trabalho e o tempo livre, este último, para o diretor seria "o único e verdadeiro espaço de liberdade do ser humano". E se o retrato das horas de trabalhos guarda tintas de realidade, é ao mostrar o momento de lazer que Carlão libera seu imaginário e seu universo pessoal. Desse modo, no Clube Democrático – tal nome é quase um inventário das intenções do diretor ao conceber esse universo – as operárias do início do século XXI dançam ao som de soul e boleros e não ao som de funk ou axé music como seria de se esperar, caso a intenção fosse a de uma radical verossimilhança. E no baile de sábado há espaço para todos, à exceção dos fascistas (anti-democráticos por excelência), interagirem e se integrarem. Até mesmo o tarado que, no início do filme, aparece importunando as moças no ponto de ônibus. Mas nesse mundo idealizado, tudo acaba parecendo mais coerente e real que se houvesse um retrato verista. Com isso, Reichenbach caminha para concluír seu filme de forma a frustrar as expectativas quanto a um clímax de intensa dramaticidade.

Ao domingo, o grupo fascista aparece desintegrado, mesmo com a insistência cada vez mais insandecida de Salesiano em manter seu discurso. Mas para Aurélia e suas companheiras, a vida segue seu curso, com a seqüência final da visita a Suzano, que traz à mente a lembrança do curta Sonhos de Vida, realizado por Reichenbach em 1979. Como suas personagens, Carlão vai em frente, lutando contra a estreiteza do circuito distribuidor-exibidor, que fez com que este ótimo Garotas do ABC fosse jogado no mercado sem qualquer estratégia de lançamento e retirado de cartaz antes de ter tido tempo hábil para encontrar seu público. Se Aurélia após a decepção com Fábio descobre um novo horizonte com o irmão de Kinuyo, Carlão também não desiste e anuncia seu próximo projeto para após o lançamento de Bens Confiscados: Lucineide Falsa Loura, mais um episódio da saga das Garotas do ABC.


Gilberto Silva Jr.