BELÍSSIMA
Luchino Visconti, Bellissima, Itália, 1951

Ao compararmos as seqüências de abertura de Belíssima e as do posterior, Sedução da Carne, somos acometidos da aparente constatação de que o autor teria realizado uma abrupta operação de ruptura. Afinal, ao vermos em Belíssima a harmoniosa, comedida e precisa decupagem da orquestra, recheada de planos-detalhe centrados no desenho e nas formas dos instrumentos musicais intercalados com uma serie de planos médios dos músicos, não imaginaríamos que no seu filme seguinte Visconti colocaria logo nos seus primeiros segundos a opulência e a suntuosidade da ópera Il Trovatore de Giuseppe Verdi. Simplicidade, despojamento versus o exagero, o transbordante e o espetacular. Essas duas expressões, aparentemente antagônicas e em constante conflito, sempre estiveram unificadas e entrelaçadas por um frágil fio na singular arte de Luchino Visconti. Mesmo em seus três primeiros filmes, comumente considerados pertencentes ao movimento neo-realista – e dos quais Belíssima é cronologicamente o último –, percebemos que já estão ali entranhados em suas formas o refinamento e o apurado senso estético de um peculiar artista-esteta que não poderia de forma alguma ficar muito tempo preso aos preceitos de qualquer escola. Luchino Visconti sempre foi muito maior que o neo-realismo e Belíssima muito mais que uma continuidade de seus filmes anteriores (Obsessão e A Terra Treme), muito mais que uma simples obra de transição entre duas possíveis distintas fases de sua carreira. O filme é, acima de tudo, um claro manifesto de reavaliação do movimento neo-realista.

Um ambiente desconhecido e pouco familiar ao mundo aristocrático do qual Visconti faz parte é escolhido novamente como objeto de captura de suas lentes: as vilas e os cortiços da classe média baixa romana. Visconti nos narra com destreza e poesia a estória de Magdalena Cecconi, interpretada de forma absolutamente magistral por Anna Magnani. Morando em uma casa que é invadida todas as noites pelas luzes e pela vibração trêmula de uma tela cinematográfica, já que de seu quintal é possível assistir aos filmes exibidos pelo cinema ao ar livre do lado. Essa tela a nutre com o glamour e a magnitude do melhor cinema escapista hollywoodiano, que ela sonha em utilizar como uma ponte que irá tirá-la da atual pobreza e a conduzirá para uma vida de encantos e esplendor. Mas para concretizar o seu desejo Madalena precisará de uma ferramenta que, elaborada e manuseada por ela, tornará mais fácil o seu aceso a essa incrível "fábrica de ilusões", e essa ferramenta será justamente a sua pequena filha Maria.

Inconscientemente disposta a corromper a inocência da filha, ela a apresentará a um mundo cruel onde está acentuada de forma assustadora a competição e a insaciável sede pela fama. Para sobreviver e para se destacar nesse ambiente é preciso se dedicar integralmente a ele e até mesmo se escravizar, obedecendo cegamente às suas severas regras. Submetida a uma serie de humilhações, Maria é então obrigada a decorar versinhos, a se vestir e a se portar de maneira especial. A menina tenta de sua forma se comunicar com a mãe e expressar o que está sentindo diante daquela situação, porém um grandioso abismo tornará mãe e filha incomunicáveis – e esse abismo é exatamente o sonho obstinado de Magdalena. Em uma cena tocante e densamente dramática, a menina que acaba mais um dia árduo de busca pela fama é posta na cama pelos pais e, após ficar sozinha em seu quarto, expele um melancólico e contido choro. Maria, a principal vítima e sofredora das duras conseqüências de um sonho que não lhe pertence, é ignorada e usada como um ser que não possui o direito de exprimir seus próprios sentimentos. Somente quando está só, portanto, surge o momento propicio para emanar e soltar todas as suas mágoas. Maria está em uma prisão.

As oposições vida versus cinema, mundo real versus mundo de fantasia, verdade versus mentira são acentuadas ao longo da trajetória de Magdalena e sua filha Maria e estão estreitamente conectadas à sugestão estética proposta pelo neo-realismo italiano, configurando-se, portanto, em provocadores comentários que colocam em questão o prazo de validade das teorias levantadas pelos outros pioneiros dessa escola. No final de Belíssima, quando Anna Magnani está prestes a levar o choque que a recolocará no "mundo real", surge o comentário exposto na importante seqüência ambientada na sala de montagem dos estúdios da Cinecittá. A montadora revela que no passado tinha sido chamada para trabalhar como atriz, por ter o porte condizente ao tipo que estavam procurando, e que depois de dois ou três filmes nunca mais foi requisitada e que, portanto, ao invés do glamour de uma vida de estrela o destino lhe tinha reservado o escuro das salas de montagem. Ela completa ainda que para ser um ator é necessário ser um ator de verdade, e que se você não for realmente um ator é melhor que busque uma outra profissão. Está sendo posto em xeque aqui um dos maiores cânones do neo-realismo – e ocorrendo a valorização do ator com formação. Na seqüência final, quando Magdalena, enfim, desiste de seus objetivos e faz as pazes com o marido através de abraços e afagos, ela, ouvindo o som que emana do cinema, fala a seguinte frase: "Esse Burt Lancaster é mesmo muito simpático". O marido reage como se isso fosse uma possível recaída da esposa, ela sorri respondendo que não. Ou seja, Burt Lancaster é um elemento representante de um outro mundo, o mundo do cinema, mas de qual cinema? O cinema onde o cinema é o cinema e não o mundo. O cinema de que em certa medida Visconti estaria cada vez mais próximo sem, no entanto, renegar de alguma forma o seu passado como cineasta. Sua obra estará a partir daqui fazendo claramente a fusão e o choque entre esses dois cinemas. Ironia ou não, o mesmo Burt Lancaster entraria na filmografia de Visconti e seria anos mais tarde o protagonista de duas de suas grandiosas obras primas, O Leopardo e Violência e Paixão.


Estevão Garcia

(DVD Versátil)