Au hasard, la vie.
Balthazar é um burro
de carga em tempos de automóvel. Pertencente
a uma família que vive numa pequena casa de campo,
trabalhando a serviço de outra, ele acompanha
a saga e a sina daqueles humanos à sua volta,
na vã esperança de que lhe dispensem mais
do que árduos serviços escravos. No seu
relacionamento cativo com Marie, com quem cresceu, Balthazar
vê a sombra do que poderia ser uma existência
mais recompensadora. Mas Marie moça crescida,
precisa perseguir um futuro qualquer, um amor qualquer,
que a torne de alguma forma distinta, de alguma forma
mulher, distante das aspirações paternas.
Ela não pode mais amar Balthazar. Ela, a única
que compreendia sua existência animal com mais
ternura do que simples consideração, que
via nele um ser com vida própria, para além
dos serviços executados para os homens, ela é
levada do cotidiano do burro, pela vida. E é
com profundos olhares de melancolia que ele nos diz
tudo isso. A vida passa e nada pode segurar os homens.
Eles vêm e vão. Mas através isso
tudo e através suas dores e sofrimentos, será
que eles prestam atenção em si mesmos?
Será que eles lembram de tomar conta de si?
As tão alardeadas "predestinação"
e "transcendência" bressonianas, parecem
algo na verdade muito mais indefinível. Algo
que escapa entre os cortes de seus filmes, não
apenas nas elipses, mas no que faz de um filme um filme
para além de planos significantes, como acontece
em Manoel de Oliveira e Clint Eastwood. Há uma
certa pulsão, um certo sentido, que foge à
análise fílmica, que se faz presente apenas
no momento da projeção, quando somos capazes
de perceber estes intervalos invisíveis entre
planos.
Bresson é econômico
nos meios e embora tudo pareça seco – lentes
50mm, fotografia sem grandes contrastes, interpretação
inexpressiva – há uma emoção que
parte da observação da vida em curso.
Marie era uma criança alegre, que fez juras de
amor com Jacques, o filho do proprietário da
fazenda; que, responsável pela adoção
de Balthazar, o batizou e dispensou a ele ao longo da
vida, grande carinho e cuidadosa atenção.
Dedicada a ele, respeitosa do seu amor por ela, Marie,
no entanto, acaba abandonando Balthazar. Precisamente
no momento em que chora no banco do carro, ao ser assediada
por Gérard logo após interferir nos mal-tratos
deste ao burro. Os acordes da trilha sonora anunciam
em seguida, quando Gérard persegue Marie em volta
de Balthazar, que algo trágico está em
curso – e que não há nada a fazer. Balthazar
sabe que ela é humana e que deve perseguir seu
caminho. Sabe que na sua existência animal é
inoperante.
A observação do
curso da vida que empreende Bresson neste filme vem
pelos olhos de Balthazar, no seu percurso de dono em
dono, de mal-tratos a mal-tratos. Os closes nos olhos
do animal fazem dele espectador privilegiado e personagem
central, que parece entender de "destino"
mais e melhor que qualquer humano. Parece conhecer mais
de perto o andar da vida, suas dobras, envergaduras
e ironias. Quando da sua chegada ao circo, ao passar
entre as celas dos outros animais, comunica-se com eles
em seu silêncio, reconhecendo que tudo os ultrapassa
e que seu destino, provavelmente triste, não
pertence a eles.
Mas os destinos dos homens,
estes também não parecem pertencer aos
donos. No entanto, mais do que a anunciada crença
de Bresson na predestinação, tal dado
parece dizer mais respeito àquilo que escapa
no filme. Em seus recortes privilegiados, Bresson denota
muito mais do que se passa enquanto ação
no interior ou no exterior do plano. Os seus "modelos"
(termo cunhado por ele para definir seus atores), com
gestos frios de pouco empenho e falas enunciadas quase
sem emoção, cumprem suas ações
para transmitir os acontecimentos deste mundo filmado.
Mas algo mais acontece. Porque o caráter
de observação construído por Bresson
– dentro do filme e no seu processo constitutivo – nos
apresenta uma realidade que aparenta não depender
das escolhas de seus agentes, como se eles fossem atirados
a isso por tudo o que os cerca e pelo andamento do mundo.
Trata-se, pois, muito mais de uma visão trágica
do que de predestinação. A vida anda como
anda e cabe aos seres andarem com ela.
Desta forma, Au hasard Balthazar
é um filme privilegiado na carreira de Bresson.
O olhar de Bathazar que pauta todo o filme dá
a exata dimensão da observação
do mundo. Porque os animais sabem melhor do que ninguém
do caminhar dos dias, da vida e da morte. Reagem como
podem, momento a momento, a suas alegrias e infortúnios.
A maneira distanciada com que percebemos os personagens
bressonianos é, portanto, perfeitamente identificável
com a vivência impassível dos animais,
em pacto secreto com a natureza, mas livres de qualquer
ação empreendedora. Que venha o que vier.
Marie fez juras de amor infantil
a Jacques, mas quando este volta para lhe dizer que
veio buscá-la, que ainda a ama como antes, ela
diz que precisou muito de alguém como ele, honesto,
que a levasse, que disesse "não tenha medo,
não é culpa sua", mas que não
tem mais ternura no coração, que tudo
agora não passa de palavras que não a
tocam mais. "As promessas infantis que fizemos
eram num mundo imaginário, a realidade é
outra coisa". A realidade, o mundo à sua
volta a havia corrompido. Os sofrimentos a ela impingidos,
o curso dos eventos de sua vida, destruíram sua
sensibilidade. Balthazar, no seu coração
mudo, acompanhou tudo. Mediu com exatidão cada
passo de destruição dado à sua
volta. Na sua distância impotente, nos sofrimentos
que ele próprio enfrentou, tudo o que pôde
foi chorar. Um choro agonizado, como se expurgasse suas
dores e dos homens à sua volta. Entregue aos
acontecimentos que o ultrapassam, ele morre tranqüilamente,
compreendendo o fim como ninguém poderia. Ele,
que viveu distinto entre os homens, morre nas planícies,
anônimo entre animais, entregue à natureza,
que rege as vidas de todos, a dona de seu nascimento
e que agora o acolhe. E a mãe de Marie o reconhece
tardiamente como um santo.
Compreender profundamente os
desígnios da vida, na tragicidade de suas alegrias
e tristezas, nos sentidos ocultos que reverberam por
todos os cantos, em todos os encontros, em todos os
imprevistos acontecimentos, eis a santidade de Bresson.
Tatiana Monassa
Citações:
"O ator aprendendo seu
papel pressupõe um conhecimento prévio
de um ‘eu’ – que não existe."
"Construa seu filme em
branco, silêncio e tranqüilidade."
"O real é algo que
fazemos para nós mesmos. Todo mundo tem seu próprio"
"O que eu procuro não
é tanto a expressão pelo gesto, palavra
ou mímica, quanto expressão pelo ritmo
e combinação de imagens, por sua posição,
relação e número."
"Seu filme – deixa as pessoas
sentirem a alma e o coração nele, mas
deixe que ele seja feito como um trabalho de mãos."
"Por onde eu começo?
Do assunto a ser expressado? Da sensação?
Começo duas vezes?"
"Criar não é
deformar ou inventar pessoas ou coisas. É amarrar
novas relações entre pessoas e coisas
que existem, como elas são"
"Em 75% por cento das vezes
o acaso nos governa. E nossa vontade é absorvida
pela pré-destinação."
Robert Bresson
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