Aquilo
que O Prisioneiro da Grade de Ferro tem em comum
com Peões é aquilo que faz dos
dois filmes provavelmente os melhores longas-metragens
documentários do cinema brasileiro em anos. Em
ambos, uma imagem do passado sustenta a construção
de um ambiente do presente, e essa curiosa estrutura
encontrada permite visualizar toda uma problemática
histórica que nasce de um confrontamento com
essas imagens (de diferente estatuto, de diferentes
momentos). A partir de uma imagem do passado, que presente
construir? Diante de uma imagem-matriz que, registrada
ou não, prefigurou o presente histórico,
como se comportar? Essas parecem ser as linhas básicas
para a construção desses dois filmes tão
diferentes entre si mas que testemunham a preocupação
em pesquisar as marcas da História recente dentro
de um conjunto homogêneo e aparentemente a-histórico
(por seu registro de cotidiano) que é o viver-hoje
insistematizável pelas ciências humanas,
por mais avançadas que sejam. E onde a ciência
não cosnegue entrar, como se diz, existe espaço
para a arte.
Em O Prisioneiro da Grade de Ferro, a imagem
preexiste ao filme. Carandiru não é somente
um complexo carcerário entre outros, e tampouco
foi escolhido por ser o mais populoso. Ele existe dessa
forma pela memória do massacre de 111 presos
em 1992, memória essa que tentou ser implodida
juntamente com a implosão dos prédios,
dez anos depois. Assim, nada mais natural ao filme começar
pelo gesto político de desimplodir o prédio,
rodar a fita para trás, até que o prédio
fantasma renasça, intacto, agora como imagem.
Tudo que se verá dali em diante o cotidiano
e o funcionamento interno do presídio, as relações
de poder, os protocolos com as figuras de autoridade,
as particularidades antropológicas da vida na
prisão, os momentos íntimos do confinamento
(o extraordinário segmento filmado pelos internos
Joel e Marcos sobre a noite dentro da cela) estará
marcado pelo acontecimento ocorrido uma década
atrás, ressignificando e inscrevendo sua marca,
seja através de lembranças seja pela própria
presença física dos locais em que tudo
aconteceu.
Paulo Sacramento, em O Prisioneiro da Grade de Ferro,
não realiza apenas um "filme sobre o Carandiru".
Tanto em seu começo quanto no final do filme,
em que um deslocado e abobado Alckmin glorifica sua
administração pela construção
de vários presídios quando já
tínhamos visto ao longo do filme que a questão
da prisão não se resolve de forma alguma
com mais espaços de confinamento , o filme
mostra uma preocupação que é muito
maior do que "retratar" ou "documentar":
ele exerce um papel ativo de construção
de uma memória subversiva (no sentido de reconstruir
o edifício destruído pelas autoridades)
e prospecta historicamente um problema político
e social. O Prisioneiro da Grade de Ferro implode
o raciocínio lógico das autoridades pela
simples contemplação: basta um simples
estudo de caso para mostrar que as políticas
costumeiras não têm o mínimo objetivo
de resolver um problema, mas unicamente de livrar temporariamente
a sociedade de indivíduos não-desejados
(a palavra "reeducando", substituída
pela politicamente incorreta "preso", falada
logo no começo do filme, parece ser a única
"evolução" no tratamento com
os internos). Os 111 presos mortos no Carandiru parecem
renascer apenas para ouvir do governador Alckmin sua
grande e assoberbada solução: a História
se tece nesse curto-circuito surpreendente.
Com Peões, acontece algo semelhante, que
quebra completamente a horizontalidade (temporal, temática)
dos trabalhos recentes de Eduardo Coutinho. Ao focar
a base de sua pesquisa na procura de rostos desconhecidos
nas passeatas que tornaram Lula uma figura política
de primeira grandeza no cenário brasileiro a
partir das greves do começo da década
de 80, e depois entrevistá-los à maneira
que se tornou sua, pessoal e intransferível desde
Santo Forte, Coutinho faz um inventário
do imaginário de esquerda do Brasil nos últimos
25 anos. Peões não é o filme
que se espera de Coutinho pós-Santo Forte:
estamos num outro terreno, que não cria mais
o mosaico espaço-temporal de um Babilônia
2000 ou de um Edifício Master, mas
monta um tempo especulativo da política e da
sociedade brasileira que tenta dramatizar através
da expressividade artística um percurso da consciência
histórica de um país.
Nesse sentido, as imagens de arquivo dos filmes sobre
as greves (ABC da Greve, Linha de Montagem,
e deste último a soberba cena em que Lula fuma
um cigarro, tenso, instantes antes de fazer um de seus
discursos) contrastam em tom, em significação,
com as imagens contemporâneas, dos operários
reconhecendo seus amigos nas fotos ou sendo entrevistados
em suas casas pela câmera de Coutinho. Numa, o
momento político é de tensão, desesperança,
mas a força popular é grande e sente-se
um laço de união em torno de um objetivo.
Na outra, dos tempos de hoje, o mecanismo-Coutinho funciona
para instalar cada entrevistado em sua individualidade,
e apesar do clima político às vésperas
das eleições que colocariam seu companheiro
Lula na presidência da república, o clima
é melancólico, nada esfuziante, cheio
de uma resignação digna com o trabalho
e com a vida, mas nada exultante em relação
à situação política nacional.
É como se as entrelinhas da História se
fixassem sub-repticiamente a cada fotograma do filme:
Peões flagra a passagem histórica
de uma esquerda revolucionária para uma esquerda
que precisa abraçar um programa de reformas contra
o qual sempre lutou. Curiosamente, essa mudança
também implica a mudança da individualização
da multidão. Não é o povo unido,
aquele que jamais seria vencido, que aparece no filme
de Coutinho, mas antes individualidades separadas, organizadas
em grupos mas ainda assim discerníveis como sujeitos.
Como em Cabra Marcado para Morrer (1984), existe
uma separação entre um "antes"
militante, engajado, raivoso, heróico, e um "depois"
que tenta mostrar (mesmo porque faz a própria
experiência disso) que a realidade é muito
mais complicada que slogans, que de perto a prática
contesta a teoria, ou no mínimo pede uma outra
teoria.
O que faz de Peões e O Prisioneiro
da Grade de Ferro filmes melhores e mais decisivos
do ponto de vista da história brasileira do que
seus meio-irmãos, respectivamente Entreatos
e Carandiru, é essa delicada e tênue
relação histórica que nos obriga
a considerar cada imagem como um documento no qual se
insere a passagem do tempo. Por mais veementes e épicas
que sejam as imagens de Carandiru, por mais reveladoras
e importantes do ponto de vista da documentação
historiográfica que sejam as imagens de Entreatos,
elas se prestam mais a um registro de atualidade (o
que fazem muito bem, convem dizer) do que a um questionamento
histórico inerente à imagem. "Foco",
"mise-en-scène" ou expressões
semelhantes conseguem muito pouco dar conta da clivagem
aqui operada: em todo caso, Coutinho e Sacramento parecem
saber clara ou intuitivamente que imagem
não é algo que se capta, mas sempre uma
coisa que nasce de uma outra, e que estabelecer o choque
entre uma e outra é o ponto de partida para um
adensamento da relação que temos com a
imagem uma certa densidade de "leitura",
de decodificação e, assim, para
um questionamento histórico que provém
da imagem.
Ruy Gardnier
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