THE BLUES: PIANO BLUES
Clint Eastwood, Piano Blues, EUA, 2003

Na primeira seqüência de Piano Blues, episódio para a série The Blues feita para a PBS (Public Broadcast System) e em exibição, no Brasil, pelo canal por assinatura GNT, Clint Eastwood faz brevíssimo histórico do piano. De como o instrumento surge no início do século XVII na Itália, a partir do cravo; de como é adotado por Bach, Mozart e Beethoven; e, finalmente, de como continua, na época atual, determinante para a música norte-americana. Mais do que a mera descrição tecnológica do aparelho, está em jogo, para Eastwood, a maneira pela qual os artistas o utilizaram e o utilizam: trata-se de enxergar o piano enquanto meio de expressão através do qual músicos e mais músicos, não apenas do blues, mas também do jazz e do rock and roll, influenciam-se mutuamente, construindo séries de camadas e de redes a partir das quais se edificam a própria identidade cultural dos EUA.

Piano Blues fala sobre memórias, sobre músicos que se lembram de outros músicos, sobre as influências que tiveram ao longo das respectivas carreiras, sobre as origens do blues nos spirituals, no boogie-woogie, no ragtime, no folk. É o próprio Clint Eastwood quem entrevista seus convidados, por intermédio de bate-papo informal em que as lembranças do cineasta se misturam às dos entrevistados, de sorte que se estabelece, no filme, não uma investigação objetiva acerca da História do blues, mas antes uma busca afetiva das conexões existentes entre os personagens, ou seja, das relações microscópicas subjetivas que acabam por forjar o contexto musical norte-americano, na qual o diretor se despe da onipotência atribuída ao narrador a fim de se colocar, a um só tempo, enquanto simples admirador e como parte integrante do organismo vivo em que se constitui o blues e, por conseguinte, suas variações.

Sentado lado a lado de seus ídolos na banqueta do piano, Clint Eastwood é o catalisador que permite a Ray Charles, por exemplo, rememorar como, aos três anos, na Flórida, abandonava as brincadeiras com os irmãos para ouvir o boogie-woogie tocado pelo vizinho, o primeiro, de fato, a lhe ensinar as notas ao piano – e de quem nutre admiração sincera, por não lhe ter simplesmente enxotado de sua presença. Desse modo, com perguntas aparentemente banais, a respeito das influências que sofreram e das músicas que os marcaram no início, e com a citação de diversos blueseiros do passado, Eastwood extrai dos músicos não palavras sobre si mesmos, mas sim acerca dos outros: Dave Brubeck, da Califórnia, que lembra de Art Tatum e o compara, em grandeza, a Oscar Robertson; Dr. John, de Nova Orleans, que rende homenagem a Professor Longhair, ou que comenta como o piano de Thelonius Monk se assemelha ao do Delta do Mississipi.

Flórida, Califórnia, Nova Orleans, Chicago: na viagem emotiva de Piano Blues, a despeito das transições geográficas, interessa a Eastwood, sobretudo, os aspectos de passagem e de transformação da música embutidos na jornada pelo país. Assim, a proposta do cineasta é ver o blues enquanto matéria-prima pulsante que não apenas dá origem à miríade de estilos intrínsecos a ele, variantes conforme o espaço sócio-econômico e o momento histórico, como também propicia o nascimento do jazz, do bebop e do rock and roll. Para Clint Eastwood, o blues é a raiz da música e da cultura norte-americanas, mas que, ao invés de se fixar e de se aprofundar no solo, permanece na superfície, mutante e movente, uma vez que cria sempre novas ligações entre os homens e a arte, entre períodos de tempo e contextos sociais os mais diversos, entre os músicos de hoje e seus heróis do passado, entre aqueles que escutam e aqueles que tocam (os quais, por sua vez, são ouvintes dos que os precederam). Entender o blues como a ponte, de infinitos caminhos e ainda em construção pela sensibilidade humana, que conecta o boogie-woogie ao jazz, o gospel ao rock and roll, no circuito de memórias subjetivas entrelaçadas ao longo do filme.

O clímax de Piano Blues, não por acaso, encontra-se na seqüência em que, por meio da montagem, Eastwood une todos os músicos citados, cada qual executando ao instrumento seu estilo particular: é como diz Jay McShann, que nunca separou o blues do jazz ou do rock, uma vez que a força da música americana – e dos EUA – está na diversidade que a alimenta.


Paulo Ricardo de Almeida