MEU TIO MATOU UM CARA
Jorge Furtado, Brasil, 2004

A parceria entre Jorge Furtado e Guel Arraes (desde os tempos televisivos) sempre primou por uma tentativa clara: a de produzir produtos culturais populares e de qualidade. Se é inegável que este Meu Tio Matou um Cara traz todos os elementos requeridos para um filme que se pretenda popular, infelizmente o que mais fica da experiência de assisti-lo com os olhos rigorosos de quem sempre admirou os resultados do trabalho da dupla e, por isso mesmo, não espera menos do que produtos muito cuidados, é a sensação de que se deixou de lado a parcela da equação que diz respeito à qualidade – e o que mais preocupa é saber se isso é uma exceção à regra ou pode marcar uma tendência de acomodação.

Acomodação é uma palavra importante para se entender as ressalvas feitas ao filme – que tem sua equação completa por outra um tanto mais complicada: desleixo. O fato é que neste filme encontramos um Jorge Furtado bastante acomodado na sua “zona de conforto”, repetindo sem maior brilho tudo aquilo que sempre soubemos (e ele também) que é seu ponto forte (a capacidade de urdir tramas que misturem uma razoável complexidade de andamento com simplicidade comunicativa, a escritura de boas sacadas de diálogos e espertezas de solução de problemas na trama), mas completamente desinteressado de ir além disso, seja na encenação, seja mesmo em alguma novidade que a trama nos traga. Mas, pior do que esta acomodação, este piloto automático, é que a ela se adiciona aqui o citado desleixo que, importando menos se produto do processo de produção ou não, dá ao filme uma cara inegável de algo feito às pressas, sem maiores preocupações e cuidados com tudo de mais básico na sua encenação, sabendo que com menos do que isso se consegue (baseando-se nos já mencionados pontos fortes) a adesão do espectador ao filme. O que vemos na tela parece um Jorge Furtado feito a toque de caixa, à la Diller Trindade, onde a certeza da comunicabilidade prévia passa por cima da dedicação ao produto realizado – algo completamente diferente do que vemos num Homem que Copiava, num Lisbela e o Prisioneiro, e até mesmo num filme tão mais barato quanto o delicioso Houve Uma Vez Dois Verões.

A impressão que se tem assistindo a Meu Tio Matou um Cara com atenção é que se gravou um grande primeiro ensaio do filme, que está esperando agora que se façam algumas correções necessárias nas falas e no encadeamento narrativo, que se ache de fato as locações onde ele será filmado, que se encontrem as soluções de luz e mise-en-scène com as quais ele realmente será feito e que os atores achem o tom (e, especialmente, a regularidade deste tom) dos personagens. E mais: a montagem também está esperando um corte futuro mais atento, menos truncado na decupagem interna das sequências e onde as duas narrativas (a romântica e a policial) estejam melhor integradas, e a trilha sonora exata ainda está por ser composta – essas canções que aqui ouvimos são apenas referências da sonoridade e clima desejados ao se compor as músicas que de fato entrarão no filme. Só que, no meio deste processo, alguém resolveu lançar o filme assim mesmo, porque já tinha uma data com a distribuidora, com a gravadora que ia lançar a trilha sonora etc.

O que resta, então, são espasmos de bons diálogos, o reconhecimento de um ou outro momento de empatia (quase todos por conta da presença magnética, e sub-utilizada, de Lázaro Ramos na tela), uma boa canção na trilha (a letra inspirada de “Soraia”). Cercando estes momentos, um assustador excesso de falação, onde os personagens muito mais falam do que agem para fazer a trama andar (e o filme passa uma estranha sensação de temer profundamente o silêncio); algumas sequências de encenação francamente constrangedora (a festa de adolescentes que bebem guaraná e que se comportam como crianças de 12 anos); outras de uma absoluta falta de necessidade na tela (toda a “contrapartida social” da ida a prisão soa tão completamente deslocada no filme quanto a série de peripécias envolvendo a saída desta, uma caneta de Pokemon e uma galera de rua, num momento quase inexplicável até que entendemos que ele está na tela só para que os personagens justifiquem o esquecimento do endereço que o tio passa para eles na prisão – exemplo claro de “primeira solução pensada” que fica numa versão final do filme, apesar de deslocada de tudo em torno dela). Tudo isso vai se amontoando até as sequências finais, onde Furtado parece realmente ligar um botão de “vamos resolver tudo isso aqui, que o filme precisa terminar”, que está encarnado na sua mais completa perfeição na maneira quase desinteressada (do filme, dos personagens, do espectador) com que se encena o desfecho romântico.

E o que mais entristece, para além do quase total isolamento do núcleo Furtado/Arraes como produtores deste chamado filme popular de qualidade, é que eles demonstram, mais uma vez (Houve uma Vez Dois Verões já apontava isso), o interesse pelas tramas que envolvem (seja como personagens, seja como público), a faixa etária onde o cinema brasileiro menos consegue comunicação e empatia: os adolescentes, os jovens. É por isso tudo que o desejo mesmo é torcer que Meu Tio Matou um Cara seja mais um engasgo do que qualquer coisa: seja um projeto que, por azar, potencializou as fraquezas (encenação, desejo de pensar a imagem) e escondeu as potencialidades já conhecidas do cinema de Furtado; seja, acima de tudo, um filme onde as imposições do trabalho de mercado (a inserção inadequada da trilha de canções – que aliás, tem patrocinador próprio! -, a rapidez do processo de realização – que Arraes mais do que domina, mas Furtado aparentemente nem tanto) acabou sufocando o tempo que o filme precisava para resultar num produto com o capricho que sempre marcou os trabalhos da dupla. Pelo menos, isso eu posso garantir, é o que estamos fortemente torcendo para ter acontecido.

Eduardo Valente