MACHUCA
Andrés Wood, Machuca, Chile/Espanha, 2004

Cada filme latino-americano que ecoa pelo mercado internacional, com maior ou menor barulho, tende a colocar sempre uma questão extra-especificidade da obra (mesmo sem ter essa intenção): por uma questão econômica e política, sempre se tenta especular, muitas vezes tateando no escuro, sobre a identidade audiovisual desse grupo de países (a América Latina). Nesse esforço intelectual, é preciso admitir as demandas em pauta como parte do jogo: as cinematografias periféricas não se impõem na vitrine da butique das imagens sem levar em conta qual o lugar reservado para elas. E é sobre isso que, quando simpósios sobre o tema Cinema Latino Americano são realizados, tanto se discute: que tipo de cinema latino-americano o resto do mundo quer ver? Certamente, não há um único – não se pode igualar Cidade de Deus e O Filho da Noiva.

Mas certamente existem filmes que, na escolha dos temas e de seus tratamentos, pensam-se de forma mais ampla, para além da autoralidade e da particularidade das questões. As próprias operações de produção modelam essas características. Tomemos o exemplo de Machuca. Parece mais ou menos óbvio que, sendo a produção fruto de uma sociedade com empresas de outros países (Inglaterra, Espanha), seu internacionalismo dita certos procedimentos – ou pelo menos aprova apenas certos procedimentos, aqueles dentro do que se pode mostrar. O maior deles é uma domesticação dos conflitos, sempre buscando deixar o espectador confortável, reconhecendo-se como parte do “time do bem”, sem jamais questionar sua própria postura – exatamente o contrário do que propõem O Invasor e Cronicamente Inviável, para citar duas exceções muito diferentes entre si, ambos apoiados em uma crueldade que, antes de ser tema, está também e principalmente na forma: na exposição-denúncia de uma verdade sem panos quentes, sem a disposição de tornar tudo mais digerível.  

Voltando a Machuca. Garoto branquelo e gorduchinho, com traços de ascendência européia e sinais de padrão classe-média, aproxima-se de garoto moreno e magro, com traços de ascendência indígena e sinais de padrão-pobreza. A amizade entre eles constrói uma escada entre os dois andares da pirâmide social, proporcionada pela política igualitária de um colégio religioso de direção britânica (o projeto catequisador-iluminista europeu agindo na selvageria de classes da América Latina). Ambos serão mal vistos e mal tratados pelos colegas, que conservam uma ordem baseada no contraste. Os pequenos reacionários não aprovam a conexão entre o não-conectável.

Esse racha na escola, sem chance de conciliação, reproduz em menor escala a dicotomia político-ideológica da sociedade chilena em 1973 (a tensão entre os defensores e os agressores do regime de esquerda comandado por Salvador Allende, em crise). O protagonista branco e burguês propõe, com sua aproximação do menino moreno e favelado e como compensação para a radicalização do separatismo de classe, uma política de boa vizinhança para abrandar os efeitos das diferenças entre ele e o amigo (entre a classe dele e a do amigo). Propõe assim a anestesia dos conflitos gerados pela desigualdade. Propõe ainda um analgésico para consciências culpadas, que age pouco sobre o suposto beneficiado pelo abraço social. Propõe também uma mudança individual como atenuante para a impossibilidade da transformação estrutural.

Mas o projeto de transformação é inviável, assim como a política de boa vizinhança, quando os valores de classe insistem em vir à tona. Diante da explicitação das diferenças, burguês e pobre são lembrados de suas condições (opostas e em conflito): o garoto almofadinha recebe o “outro” em sua casa, compartilha com ele os excessos de uma festinha burguesa, empresta seu tênis caro, mas, no primeiro conflito de interesses (em torno de sua bicicleta, ali uma simbologia), reproduz o discurso reacionário do círculo onde foi criado. Volta a se colocar como burguês quando, posto na parede por um militar, lá na favela onde o amigo e sua família levam tiros, safanões e pontapés, decide tirar o seu da reta para se salvar.

Nesse sentido, o da inviabilização da construção da ponte para conectar os dois andares da pirâmide social, a figura de uma garota, esquerdista por necessidade e não por boa consciência, é fundamental para a manter aceso os conflitos e diferenças. A mocinha também é moradora da favela. Se é ela o motivo dos suspiros do protagonista burguês, também é ela que o lembra de sua posição, que demarca sem meias palavras as fronteiras sociais, que incita a tensão na convivência entre as diferenças, recusando-se a colocar panos quentes. Sua crença na transformação pelo embate e pela pressão, sem deixar de lado o pragmatismo da sobrevivência, tem como lado contrário seu tio, coadjuvante no limite da figuração, alcoólatra, figura negativa, apesar ou porque fala com a consciência histórica: não crê em transformação alguma e conhece  na pele o imobilismo. Não é por acaso que os ricos são brancos, que os pobres são morenos, que pesa sobre aquela circunstância, em última instância, uma lógica de exploração secular. Ao final de Machuca, quando o abismo volta a ser escancarado pelo golpe militar, esse personagem impotente, angustiado e agressivo por conta de sua consciência, será a voz da verdade: o imobilismo continuará.

Se o pacto do apaziguamento social não se cumpre, por culpa de forças reacionárias civis e militares (mais civis que militares), o efeito desse fracasso é a cisão e o confronto. Machuca afirma-se quase o tempo inteiro, portanto, como um luto pelo fracasso do acordo social – acordo esse cujas bases são dadas pela classe dominante e não pela pressão da classe dominada. Cabe ao colégio pago abrir as portas para quem não pode pagar, cabe ao menino branco e burguês estender a mão para o moreno pobre, cabe às elites fazer as reformas para se evitar uma revolução ou uma crise. É com esse discurso ideológico que Machuca constrói sua dramaturgia humanista. As mudanças estão na mão das elites – não da organização popular. É uma visão.

Havendo o fracasso da conciliação, tema principal do diretor Andrés Wood, é preciso encontrar as razões dele. A significação política de cada figura humana, umas mais, outras menos, nos revelará quais são as bactérias do organismo social - e quais são os anti-corpos.  Todos giram em torno da vivência do protagonista. Entre as bactérias, localizamos a mãe adúltera e materialista, o amante rico e velho dela, os colegas de pele clara na escola, o namorado fascistóide da irmã, os pais avessos à política igualitária do colégio – todos caricaturas em maior ou menor grau. Entre os anti-corpos, além do menino (em formação como tal), há o pai progressista (e desperdiçado pelo filme) e o padre domesticador (civilizador europeu).

Mesmo tentando relativizar o empobrecimento humano e o significado maniqueísta impostos pelos estereótipos criados pelo simbolismo político-social dos personagens, que são etiquetados rapidamente (progressistas de um lado, reacionários de outro), Machuca não disfarça o esquematismo dessa operação de acúmulo de significados para alguns dos indivíduos mais valorizados pelo roteiro e pela montagem. A ambigüidade de alguns seres, como a mãe e o protagonista (em primeiro plano), ganham setas indicativas e fosforecentes para serem entendidas como tal.

Andrés Wood está claramente empenhado em articular opções narrativas que buscam atenuar o desconforto derivado dos conflitos vividos por personagens e pelo país – com a música “amolece-coração e pesa-consciência” sobretudo, mas também com a atmosfera de brincadeira de criança, que dá ar lúdico para o drama pessoal e coletivo colocado pelo diretor.

Chegamos aqui à uma encruzilhada. Se a valorização, em momentos distintos, dessas situações lúdicas é anestésica, cabe reconhecer que estas são também mais livres, desvinculadas das algemas colocadas no filme pelas etiquetas sociais. Nessas passagens, o protagonista, o amigo e sua paquera são indivíduos, não apenas setas indicativas. A imagem escapa da pedagogia dramática e política, a significação prévia é deixada de lado para os personagens ganharem um pouco de emancipação. Andres Wood assume assim sua dívida com Truffaut (o de Os Incompreendidos) e ignora temporariamente a herança de Louis Malle (o de Adeus Meninos). A vida fala mais alto, temporariamente, que a visão sobre a sociedade.

A câmera de Wood é discreta, movimenta-se sem se fazer notar, está atenta ao espaço dos personagens, sem adotar o descritivismo. A luz muda conforme o ambiente, mas, obedecendo ao esquematismo do roteiro, cai na dicotomia quando dá uma geral na favela: na primeira aparição, o ambiente está dourado (cheio de luz e calor). Momento Allende. Na aparição já próxima ao final, surge cinzenta, com as cores retiradas (fria e nebulosa). Momento golpe militar. Esse tatibitate coloca o filme dentro do modelo de arte pedagógica e de neo-esquerda que atende uma demanda por “olhares de bom coração e cheios de diplomacia”. Machuca é mais um colete em forma de lamento contra o risco do conflito, da dor dilacerante, do trauma não cicatrizável em duas horas de terapia social. Talvez seja o limite para se participar do fluxo oficial das manifestações audiovisuais.

Cléber Eduardo