O CURTA-METRAGEM BRASILEIRO RESPIRA?
Sobre a seleção nacional da Curta Cinema 2004

O título é uma pergunta que surge sempre diante de mostras ou festivais de curtas: qual é o estatuto do curta-metragem brasileiro? Que função ele tem? Quem o vê? A que objetivos ele serve? Exprime-se alguma coisa com ele? A rigor, cada filme demanda uma resposta muito particular e própria a cada uma dessas questões. Mas, da mesma forma, um juízo de conjunto se faz necessário, em parte porque são todos exibidos juntos, mas principalmente porque geralmente são produzidos da mesma forma – por patrocínios ou rendas estatais, municipais, estaduais ou federais – e, se não todos, diversos deles respondem a preocupações geracionais. A própria pergunta deve ser colocada de forma precisa: não "O curta-metragem brasileiro vive?", mas "O curta-metragem brasileiro respira?", porque se os projetores de 35mm, 16mm e vídeo (digital, beta ou VHS) atestam que lá está alguma coisa, nada garante que aquelas imagens de fato resistem a algum tipo de expressão vital para além do exercício ou do simples fazer – o quem, convenhamos, num país como o Brasil, já é um mérito, e não um mérito pequeno. Mas um filme não acaba na sua feitura: há um conjunto amplo de significados que ele evoca, de formas de que ele se apropria ou constrói, de experiências que ele partilha. Uma vez feito, ele entra no terreno comum e precisa mostrar seu valor próprio. Esse primeiro curta dará um grande realizador? O talento se confirmará nos trabalhos seguintes? O que aconteceu com o trajeto desse cineasta, que antes parecia tão interessante? Em dez tópicos, uma crônica-relatório de uma seleção específica num festival específico de cinema, na qual se toca em alguns dos pontos que afetam o curta-metragem brasileiro.

1) Por que Quero Ser Jack White (diretor Charly Braun) e O Astista Contra o Caba do Mal (diretor Halder Gomes) parecem tão cheios de vigor
diante de quase toda a produção de curta-metragens exibida na Curta Cinema? Apesar da narrativa bem cuidada, da temática pop e do ritmo ágil, não são filmes que saiam das soluções estéticas fáceis para existir (certas situações previsíveis, câmera em fast forward ou cortes "espertos"). Ainda assim, vistos no bojo da produção exibida, caracterizam-se facilmente como alguns dos 15 ou 20 melhores curtas-metragens do ano. Em Quero Ser Jack White, o fácil-demais-de-se-gostar não deve esconder as qualidades menos óbvias do filme: a naturalidade dos atores nas cenas de sexo ou fora delas, ou a maneira como se constrói a relação de cada adolescente com a casa e com a mãe. Em O Astista..., um filme também emocional (só que com o cinema) guiado pelo humor, são evocadas as sessões de filmes de Kung Fu em salas improvisadas com material que dá sempre defeito e com público ativo, falando, brigando, entrando e saindo da sala. Humor muitas vezes fácil, mas ainda assim um dado sentimental forte de amor por um tipo de ritual hoje extinto, mas também pelo dialeto nordestino, do qual foi graciosamente distribuído um pequeno "glossário" para se entender o filme ao começo da sessão.

2) O advento da câmera digital facilita uma série de novas utilizações da imagem, muitas vezes para o lado lúdico. Allan Sieber, em mais uma de suas incursões fora do terreno da animação, fez Superstição, em que uma equipe de filmagem no banco de trás do carro de Paulo César Pereio acompanha, com a família do ator, e registra a prova viva da mitológica história de que segundo Pereio "a contra-mão é uma superstição". A câmera pode filmar momentos prosaicos num carro ou uma conversa conceitual entre pai e filho, como em Imprescindíveis de Carlos Magno e numa espécie de spin-off não autorizado dele, Meu Nome é Paulo Leminski de Cezar Migliorin. Nos dois últimos, o mesmo projeto: o pai por trás da câmera pede ao filho que recite algo glorioso em arte ou política, e o que retorna é excremencial do ponto de vista da cultura de massa ou fisiológico. Em chave mais especulativa, duas crianças brigando na lama, tomadas de uma janela num prédio ao lado, pode se transformar pela abstração do som em uma imagem-síntese da vida (Da Janela do Meu Quarto de Cao Guimarães). Se a aplicação do vídeo às fases mais corriqueiras da vida é apaixonante e designa quiçá um caminho novo a ser tomado pelo cinema, os projetos não chegam a assumir um estatuto propriamente novo, remetendo à blague (no caso do filme de Sieber), ao choque de contrários um pouco fácil demais (Magno e Migliorin), ou a uma separação um pouco aviltante entre sujeito filmante e objeto filmado, que o título faz questão de frisar (Guimarães). Em todo caso, são todos situações de destaque dentro de uma produção que não está exatamente transbordando de idéias novas.

3) De longe, um dos mais estimulantes filmes (usamos esta palavra indefinidamente tanto para filmes mesmo, peças tomadas em película, ou para vídeos, de suporte magnético ou digital) exibidos na Curta Cinema, e certamente a maior revelação, foi Man.Road.River., de Marcellus. Utilizando o preto e branco para transformar a paisagem em conceito, o filme encena em um único plano (e um movimento, um lentíssimo zoom out, lá com uns 2/3 de filme transcorrido) o caminhar de uma silhueta negra que atravessa um rio (nascido de uma enchente?) que passa por uma estrada. Aqui, não é mais uma metáfora que aparece da abstração da imagem, mas a imagem com um fim em si mesmo, elaborada com uma precisão notável, e que vai colocando Belo Horizonte (que no ano passado já fez na mesma mostra a também muito bacana sessão do coletivo A Teia) no ponto alto do cenário experimental brasileiro.

4) Para seguir nos "gêneros" destacados para prêmio da Curta Cinema – que, convém lembrar e parabenizar, agora é festival competitivo –, "ficção", "experimental", " documentário" e "animação", o único filme de animação que atingiu de fato uma estatura maior foi Desirella, de Carlos Eduardo Nogueira. Aproveitando o culto da imagem física vendida em todos os lugares como a garantia da felicidade, o filme cria uma personagem entre o horrível e o maravilhoso, verdadeira máquina que substitui o lugar do corpo. Só que o corpo começa a se vingar quando é tratado como máquina, e ao mesmo tempo em que Desirella brilha nos outdoors que divulgam a capa de uma revista masculina, a verdadeira estrela quebra as duas pernas correndo atrás de seu remedinho anestesiante e sangra até o fim. Mas o que poderia apenas ser uma historinha sádica de ressentimento contra essas figuras que existem aos montes assume uma dimensão mais interessante quando som e imagem se casam com o universo de glamour da personagem, tentando "entender" a partir dos signos evocados a opção pelos exemplos mais superficiais de felicidade. Essa imagem que pesquisa a (própria) imagem acaba com um aspecto freqüente e muitas vezes desagradável da animação: uma certa ingenuidade de encenação que se rebate como ingenuidade de visão de mundo. Nesse quesito, vale lembrar de A Moça Que Dançou Depois de Morte, de Ítalo Cajuíno, enésima utilização do cordel como estrutura dramática de curta-metragem, mas aqui impressionantemente bem cuidado.

5) De documentários, alguns adoráveis (Paola, sobre uma travesti que vive num minúsculo município da Paraíba, ou Êxito d'Rua, sobre um coletivo de hip-hop, conscientização política e organização social), mas um panorama bastante fraco em relação aos últimos anos. Os filmes de sempre sobre religião, mais um filme sobre a morte de Glauber Rocha, nostálgicas rememorações de outrora e até agigantadas reportagens estilizadas sobre heavy metal ou jogadores de futebol... Em todo caso, dois se destacam, e curiosamente ambos de Pernambuco, e ambos com uma aproximação mais brincalhona em relação aos preceitos documentários: O Homem da Mata e A Figueira do Inferno. Em O Homem da Mata, de Antônio Carrilho Souza Leão, faz delirar o universo de um homem, José Borba da Silva, canavieiro, em artista multi-tarefa e guardião da floresta. Borba vira o super-herói Jack da mesma forma como anda pelas matas, e a ficção nasce da exacerbação do documentário. Em A Figueira do Inferno, membros e agregados do coletivo Telephone Colorido fazem um autêntico filme-experiência sobre a famosa planta trombeta (entre outros mil nomes), famosa tanto por propriedades medicinais e xamanistas quanto pelas propriedades alucinógenas. O manuseio das entrevistas é extraordinário: a palavra científica assume o mesmo estatuto que o discurso místico ou tradicional, o livro fala, o pajé fala, a equipe vira cobaia de sua própria expedição. Se a sessão especial dedicada à produção do Telephone Colorido deixou um tanto a desejar (sendo Noninonino e Copo de Leite os únicos inéditos bacanas da safra de filmes do coletivo), esse filme redime tranqüilamente o grupo. Entre os documentários tradicionais, menção para The Big Boy Show, de Lenadro Petersen e Claudio Dager, que consegue instalar com criatividade o ritmo de seu biografado dentro do formato restrito da reportagem biográfica.

6) De filmes parasitários o inferno está cheio? Em todo caso, há de se distinguir entre dois tipos de filmes parasitários: aqueles que desejam apenas ser homenagens e aqueles que acreditam tanto em seus amores que acham que a graça do mundo é repetir tudo a esmo. Na primeira categoria, está o dulcíssimo Veludo & Cacos de Vidro, de Marco Martins, uma homenagem vertiginosa aos primeiros filmes de Rogério Sganzerla – principalmente a A Mulher de Todos e a Helena Ignez, a própria mulher de todos –, com dois atores impagáveis, Renato Turnes e a estonteante Julie Christe, e uma espécie de estudo pop-crítico da sedução pelas frases e atitudes dos personagens sganzerlianos. No segundo modelo, Sexo com Objetos Inanimados e uma fixação um tanto óbvia pelo universo de Cães de Aluguel: piadinhas e tortura dão o tom, como se uma série de filmes iguais nunca tivesse sido feita e repetida à exaustão ao redor do mundo e hoje não fosse uma coisa tão batida e previsível quanto filmes com Robin Willilams.

7) No Festival Brasileiro de Cinema Universitário desse ano, já pudemos ver A Lâmpada e a Flor, de Pablo Ferreira, que dividiu as atenções e os prêmios com Nossos Parabéns ao Freitas, de Felipe Marcondes Sant'Angelo, inaceitavelmente fora da mostra. Em A Lâmpada e a Flor, uma situação de beira de estrada e um toque mágico são o ponto de partida para a construção de um universo de delicadeza mesmo quando só parece existir crueldade ao redor. Sem qualquer excesso narrativo ou cenográfico, o filme nos instala na vida de quatro personagens que vivem na estrada para, com doçura, tirar a mulher do jugo de um aproveitador para colocá-la nas mãos de um humilde apaixonado. A modéstia do filme é seu grande trunfo: a aparente simplicidade de todo o filme só intensifica o clímax final, em que a lâmpada acende de novo e o realismo mágico pode existir sem musiquinha lacrimejante ou o açúcar costumeiro. Está mais para Ferreri do que para Garcia Marquez. Notáveis as atuações de Camila Mota e Francisco Gaspar. Ainda no terreno das atuações, menção para André Deca, do filme Momento Trágico, que carrega nas costas com naturalidade impressionante um filme óbvio na premissa e na condução. Surge para o cinema um ator cômico que é bom quando fala e quando ouve.

8) Copan, de Bernardo Spinelli, toma o prédio homônimo, um dos marcos arquiteturais de São Paulo, como o ponto de partida para um ensaio inconclusivo e apaixonante sobre espaço público, habitabilidade, capitalismo, linhas retas e amizade, e como tudo isso se junta às propostas da arquitetura. Dois rapazes partilham a mesma amiga/namorada, e os três partem numa busca pela compreensão do espaço e pela compreensão de viver nesse espaço em diversas tentativas. Copan lembra um bocado certos procedimentos de Godard em A Chinesa ou em Masculino-Feminino, na maneira como se insinua sobre um objeto de conhecimento de todas as formas possíveis (depoimentos, textos off, leituras in) mas quer acima de tudo trazer discussões muito mais do que fechá-las. Ainda enragé paulista, Veja & Ouça – Maria Baderna no Brasil, de André Francioli, é a confirmação inequívoca de um talento em rebeldia tanto política quanto formal. Aproveitando uma infame capa da revista "Veja" sobre o MST em que se lia "A tática da baderna", o filme delira sobre o conceito de baderna e faz uma genealogia selvagem do termo, fazendo um percurso não só da verdadeira dançarina que ostentava esse nome, mas também de como o nome se descolou da pessoa e passou a designar comportamentos de rebeldia intolerável desde a época do integralismo, até chegar ao conservadorismo interesseiro da "Veja". Um filme de pegada, na melhor tradição do udigrudi nacional de um cinema agressivo em sua forma, e rebelde consigo mesmo antes de tudo.

9) Pelo segundo ano consecutivo, Kléber Mendonça Filho realiza um dos filmes mais decisivos do ano. Vinil Verde conta em fotografias e narração off uma espécie de conto de fadas macabro, em que a mãe presenteia a filha com um disco proibido de ser tocado e a filha, sem atender ao pedido da mãe, toca o disco, com conseqüências imprevisíveis. Mas o filme não é apenas uma historinha de terror, como outros exibidos no festival (os tolos Formigas e Oculto, este último em parte redimido por um evocativo rosto de atriz, cortesia de Mitzi Evelyn). Se há um sentimento de suspense que paira pelo filme inteiro, Vinil Verde sabe ser mais do que apenas a encenação de algo assustador. Há primeiramente o texto de narração, que causa estranhamento só ao retirar os artigos e as preposições da fala corrente, atribuindo um tom soturno às frases doces e poéticas faladas por um narrador de voz delicadamente grave. E há o final, que ao invés de remeter a um caminho óbvio, retrabalha todo o sentido do filme e joga o imaginário do terror para a vida corrente, fazendo do susto uma espécie de etapa necessária do crescimento.

10) Como última nota triste dessa cobertura, a performance das sessões cariocas. Mesmo que alguns filmes tenham interesse relativo (Cordeiro de Deus pelo roteiro, Wragda pela música), só um filme chega a um nível rigoroso de articulação conceitual-estética: O Nome Dele (O Clóvis), dos colegas de redação Felipe Bragança e Marina Meliande. O resto varia do exercício correto em terreno já conhecido (ID) ao cinema anêmico sobre pintura (Maria Leontina), e passa por dois trabalhos de curta-metragistas que já deram sensíveis contribuições ao cinema brasileiro, mas que aqui parecem exercitar os aspectos mais daninhos de suas estéticas: Asfixia, de Roberval Duarte, utiliza a circularidade para falar de paranóia urbana e acaba transformando-se num filme de Philippe Barcinski; Mora na Filosofia, de Gustavo Acioli, ao juntar trechos de diálogos de Platão (A República, O Banquete) com cenas fortes do que se convenciona chamar de "realidade social brasileira", aproxima seu cinema da contestação acomodada de um Sérgio Bianchi. O Nome Dele (O Clóvis), através de pequenos fragmentos na vida de um guardinha municipal e de uma lógica do plano bastante rigorosa, faz da imagem um objeto lírico possante e pouco comum, tão mais bonito porque absolutamente lacônico. Os intertítulos, que de alguma forma truncavam e sobressignificavam as imagens do primeiro curta do casal (Por Dentro de uma Gota d'Água), aqui conseguem uma concisão em que não competem e nem complementam a imagem, mas dão uma lógica rítmica ao filme e aumentam seu grau de sugestão. Visão salvadora, que de alguma forma compensa o investimento e a esperança na produção curta-metragista conterrânea.

(Viagem feita, parcial e rápida, como não poderia deixar de ser na situação (muitos filmes, pouco tempo), mas uma observação que se faz necessária: Quimera, de Eryk Rocha, não consta desse texto porque sua visão não pode ser completa por motivos de força maior. Guarda-se, entretanto, lembrança muito forte do trabalho de som no filme.)

Ruy Gardnier