Vampiros de Almas
de Don Siegel, Invasion of the Body Snatchers, 1956, EUA

Não é tão difícil compreender o furor causado por Vampiros de Almas na história do cinema, ainda que à primeira vista possa se tratar – ou como tal foi feito – apenas de um "simples filme de gênero". Feito em um momento especial do cinema americano para os chamados "filmes B", suas marcas vão para além de um cultuamento histórico entre cinéfilos – como provam o fato de ter gerado duas refilmagens (com mais uma a caminho), a porção de filmes que referenciam-se a ele, mas também as marcas fortes que deixou no cinemas de autores importantes como Joe Dante.

Talvez o grande trunfo de Vampiros de Almas não seja nem a trama de paranóia (ainda que esta certamente seja chave para compreender seu sucesso naquele momento específico), nem a belíssima fotografia de Ellsworth Fredericks, mas a capacidade de Don Siegel de não se ater ao ser parte de um gênero, e sim fazendo de seu filme o gênero em sua essência. O entrecortar dos planos exibe um domínio do tempo que pouquíssimos cineastas possuem, uma capacidade de construir o olhar de cinema para além do ato de filmar.

Construído privilegiando uma narrativa clássica em uma trama com proporções épicas, não deixa de ser curioso que Siegel organize seu filme do mesmo modo que permeia a idéia de como se daria a invasão dos alienígenas em sua trama: pelos fundos. Ainda que a proporção de efeitos aterrorizante seja ampla, as escolhas são sempre as mais simples: o garoto que não reconhece a mãe, a prima que não reconhece o tio, o observar de pequenas mudanças no cotidiano gerando a desconfiança, e por fim a descoberta, quase que como num acaso – na realidade, num descuido dos inimigos –, da primeira evidência. Ao mesmo tempo em que tem uma forma peculiar de ir jogando estes pequenos acontecimentos na tela, o filme é quase frenético: não há tempo para se respirar em momento algum da ação – o que é fruto tanto da já citada montagem brilhante, como de uma organização que não permite que o ritmo frenético fascinante de sua narrativa venha a engolir quem a acompanha. Siegel é, nesse sentido, mais do que um arquiteto capaz de dar formas geniais para suas obras, mas acima de tudo um grande organizador do caos que se propõe a criar.

Um dos riscos mais acertados de Siegel é apostar completamente em Kevin McCarthy como seu protagonista. Toda a trama poderia perder o que tem de melhor no seu tom, caso McCarthy não incorporasse de tal forma seu personagem: até mesmo nos momentos em que deveria representar um galã – como quando leva a mocinha para o jantar –, o que ele definitivamente não é, acaba funcionando muito bem sobretudo porque cria uma identificação muito forte. Ainda no começo, McCarthy é tratado por alguém como se fosse um médico com grandes capacidades psicológicas ao que responde diretamente: "sou só um clínico geral". Estabelece-se nesse momento toda a relação do personagem dentro do filme, sua simplicidade e o fator de ser ele, o clínico geral, quem logo perceberá que há algo de errado no comportamento das pessoas. Da mesma forma, a autodefinição modesta do personagem de McCarthy também cria um certo elo com Siegel, que embora tido como um cineasta "clínico geral", é um dos grandes – de certa forma, justamente por crer na sua capacidade de "clínico geral".

É curioso o modo como se joga em cena a primeira evidência de algo fora do comum: um rosto sem traços. Antes vieram as acusações de olhares vazios, da ausência de emoções, e nada mais complementar para esta ausência que um rosto sem traços. O observar das mudanças dentro da sociedade pára por aí – McCarthy que em um momento indagava "o que há de errado com a loucura?" se vê tornado louco. Não deixa de ser interessante que toda a narrativa tenha ganhado diferentes tons a partir de um fato tido como verídico (o de que Siegel teria sido forçado pelo produtor a incluir o começo e o final do filme), já que isso transforma todo o filme numa tentativa desesperadora de um homem, ensandecido por certos acontecimentos, de convencer da realidade destes. E, acima de tudo, permite que a tragédia ganhe tons otimistas – mesmo que o olhar quase perdido de McCarthy ao fim deixe uma dúvida grande sobre a garantia de paz, mas com o sucesso de ter ao menos passado adiante o que tinha a dizer.

A opção de acompanhar McCarthy em todos os momentos, nunca o abandonando, é crucial para que todas as relações do filme funcionem, já que é a partir do que vive seu personagem que notaremos cair sutilmente qualquer possibilidade de confiança. Vampiros de Almas é mais que uma trama de paranóia (e eventual ironia com a idéia da histeria em massa): trata também do desespero assolador que é notar a ausência de humanidade com todos os erros à sua volta. Neste sentido, o personagem de McCarthy estaria de fato louco ao fim, pois só um louco ainda poderia estar de pé perante aquela realidade que lhe fora imposta, a do mundo onde todos seriam iguais em sentimentos (ou seja, onde estes não existiriam). Assim como Siegel joga com esse fator loucura durante a trama (fazendo com que McCarthy se autoquestione antes de abraçar por completo a idéia da invasão e de sua própria loucura), mas crendo o tempo todo em seu personagem. A loucura no filme é o estado da sanidade elevada ao máximo, o fato de se ser o único no mundo realmente consciente – e Siegel não precisa afirmar isso dizendo em tantas palavras, e sim ao não abandonar seu protagonista do início ao fim de sua saga.

Don Siegel é um criador, um cineasta consciente que a construção do cinema é algo que pode se dar das mais diversas maneiras – mas que acima de tudo sabe construir o seu cinema, do imaginar ao filmar e entrecortar. Vampiros de Almas é um filme especial não só pela importância que tem para um gênero específico, mas por ser um daqueles exemplares capazes de fazer sentir o cinema pulsar de tão vivo. Siegel faz com que a imagem morta, quando projetada, se torne a mais viva possível – e isso é o mais importante.

Guilherme Martins