Não é tão
difícil compreender o furor causado por Vampiros
de Almas na história do cinema, ainda que
à primeira vista possa se tratar – ou como tal
foi feito – apenas de um "simples filme de gênero".
Feito em um momento especial do cinema americano para
os chamados "filmes B", suas marcas vão
para além de um cultuamento histórico
entre cinéfilos – como provam o fato de ter gerado
duas refilmagens (com mais uma a caminho), a porção
de filmes que referenciam-se a ele, mas também
as marcas fortes que deixou no cinemas de autores importantes
como Joe Dante.
Talvez o grande trunfo de Vampiros de Almas não
seja nem a trama de paranóia (ainda que esta
certamente seja chave para compreender seu sucesso naquele
momento específico), nem a belíssima fotografia
de Ellsworth Fredericks, mas a capacidade de Don Siegel
de não se ater ao ser parte de um gênero,
e sim fazendo de seu filme o gênero em sua essência.
O entrecortar dos planos exibe um domínio do
tempo que pouquíssimos cineastas possuem, uma
capacidade de construir o olhar de cinema para além
do ato de filmar.
Construído privilegiando uma narrativa clássica
em uma trama com proporções épicas,
não deixa de ser curioso que Siegel organize
seu filme do mesmo modo que permeia a idéia de
como se daria a invasão dos alienígenas
em sua trama: pelos fundos. Ainda que a proporção
de efeitos aterrorizante seja ampla, as escolhas são
sempre as mais simples: o garoto que não reconhece
a mãe, a prima que não reconhece o tio,
o observar de pequenas mudanças no cotidiano
gerando a desconfiança, e por fim a descoberta,
quase que como num acaso – na realidade, num descuido
dos inimigos –, da primeira evidência. Ao mesmo
tempo em que tem uma forma peculiar de ir jogando estes
pequenos acontecimentos na tela, o filme é quase
frenético: não há tempo para se
respirar em momento algum da ação – o
que é fruto tanto da já citada montagem
brilhante, como de uma organização que
não permite que o ritmo frenético fascinante
de sua narrativa venha a engolir quem a acompanha. Siegel
é, nesse sentido, mais do que um arquiteto capaz
de dar formas geniais para suas obras, mas acima de
tudo um grande organizador do caos que se propõe
a criar.
Um dos riscos mais acertados de Siegel é apostar
completamente em Kevin McCarthy como seu protagonista.
Toda a trama poderia perder o que tem de melhor no seu
tom, caso McCarthy não incorporasse de tal forma
seu personagem: até mesmo nos momentos em que
deveria representar um galã – como quando leva
a mocinha para o jantar –, o que ele definitivamente
não é, acaba funcionando muito bem sobretudo
porque cria uma identificação muito forte.
Ainda no começo, McCarthy é tratado por
alguém como se fosse um médico com grandes
capacidades psicológicas ao que responde diretamente:
"sou só um clínico geral". Estabelece-se
nesse momento toda a relação do personagem
dentro do filme, sua simplicidade e o fator de ser ele,
o clínico geral, quem logo perceberá que
há algo de errado no comportamento das pessoas.
Da mesma forma, a autodefinição modesta
do personagem de McCarthy também cria um certo
elo com Siegel, que embora tido como um cineasta "clínico
geral", é um dos grandes – de certa forma,
justamente por crer na sua capacidade de "clínico
geral".
É curioso o modo como se joga em cena a primeira
evidência de algo fora do comum: um rosto sem
traços. Antes vieram as acusações
de olhares vazios, da ausência de emoções,
e nada mais complementar para esta ausência que
um rosto sem traços. O observar das mudanças
dentro da sociedade pára por aí – McCarthy
que em um momento indagava "o que há de
errado com a loucura?" se vê tornado louco.
Não deixa de ser interessante que toda a narrativa
tenha ganhado diferentes tons a partir de um fato tido
como verídico (o de que Siegel teria sido forçado
pelo produtor a incluir o começo e o final do
filme), já que isso transforma todo o filme numa
tentativa desesperadora de um homem, ensandecido por
certos acontecimentos, de convencer da realidade destes.
E, acima de tudo, permite que a tragédia ganhe
tons otimistas – mesmo que o olhar quase perdido de
McCarthy ao fim deixe uma dúvida grande sobre
a garantia de paz, mas com o sucesso de ter ao menos
passado adiante o que tinha a dizer.
A opção de acompanhar McCarthy em todos
os momentos, nunca o abandonando, é crucial para
que todas as relações do filme funcionem,
já que é a partir do que vive seu personagem
que notaremos cair sutilmente qualquer possibilidade
de confiança. Vampiros de Almas é
mais que uma trama de paranóia (e eventual ironia
com a idéia da histeria em massa): trata também
do desespero assolador que é notar a ausência
de humanidade com todos os erros à sua volta.
Neste sentido, o personagem de McCarthy estaria de fato
louco ao fim, pois só um louco ainda poderia
estar de pé perante aquela realidade que lhe
fora imposta, a do mundo onde todos seriam iguais em
sentimentos (ou seja, onde estes não existiriam).
Assim como Siegel joga com esse fator loucura durante
a trama (fazendo com que McCarthy se autoquestione antes
de abraçar por completo a idéia da invasão
e de sua própria loucura), mas crendo o tempo
todo em seu personagem. A loucura no filme é
o estado da sanidade elevada ao máximo, o fato
de se ser o único no mundo realmente consciente
– e Siegel não precisa afirmar isso dizendo em
tantas palavras, e sim ao não abandonar seu protagonista
do início ao fim de sua saga.
Don Siegel é um criador, um cineasta consciente
que a construção do cinema é algo
que pode se dar das mais diversas maneiras – mas que
acima de tudo sabe construir o seu cinema, do
imaginar ao filmar e entrecortar. Vampiros de Almas
é um filme especial não só pela
importância que tem para um gênero específico,
mas por ser um daqueles exemplares capazes de fazer
sentir o cinema pulsar de tão vivo. Siegel faz
com que a imagem morta, quando projetada, se torne a
mais viva possível – e isso é o mais importante.
Guilherme Martins
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