ROTEIROCRACIA

Em Memórias do Saque, necessário filme de Fernando Solanas sobre a crise argentina, a imagem é suplementar: uma banda sonora bastaria. A parte de imagem, naturalmente, é uma desculpa, é uma interface mais palatável, é um capital cultural de vida social (ir ao cinema) que garante a eficácia de divulgação da mensagem. A imagem tem um estatuto estranho: ela vai a reboque do dizer, mas ela no entanto não tem nada a dizer, ela é apenas aquele pandeirinho no fundo da banda, um acompanhamento. A estratégia é simples, e utiliza o cinema como instrumento: recai nos velhos slogans da esquerda ("A dívida externa já foi paga muitas vezes") através de um filme de spoken-word que deseja passar uma informação nova (?) a um novo público fazendo cinema redundante (em todos os sentidos que a acepção possa ter). O que leva, naturalmente, a toda questão da imagem como fator redundante, ou confirmatório de um arcabouço, de um roteiro. Ou, mais verdadeiramente, da experiência cinematográfica como mera atualização das idéias que estão num roteiro, a passagem do retângulo vertical do papel grafado para o retângulo horizontal do mundo encenado. Questão de Imagem, de Agnès Jaoui, apesar do nome, não é tanto questão de imagem quanto de verbalização, em que a imagem é submetida à operação de tábula rasa, ou valorizada não "comme une image", mas como imagem comum, equivalente a qualquer outra. As mesmas neuroses da vida de classe artística novaiorquina de Woody Allen são transportadas a Paris, e à fauna francesa, que tem uma forma toda própria de acting out de suas neuroses (e a adaptação/tradução é, admitamos, esperta), mas a câmera é proibida de trabalhar como elemento deflagrador: ela tem a única função de registrar com eficiência os atores, fazer o cinema funcionar como os contratos: vale o escrito. Em Agnès Jaoui, mas também em Wim Wenders, não se sabe se os diretores estavam dirigindo seus respectivos filmes olhando para a cena ou lendo as linhas do roteiro (isso, naturalmente, quando Jaoui não estava diante das câmeras atuando). Terra da Fartura, de Wim Wenders, não tem filme, não tem intriga, talvez nem tenha roteiro, mas somente dois (maus) personagens, ou duas efígies: uma o carinho e a esperança por uma América melhor, outro um paranóico de segurança que vê possíveis terroristas árabes em todas as esquinas. Em todo caso, o filme se resolve no escrito, não no visto/ouvido. O papel, o pré-filme, já vem com todas as verdades prontas, às quais a imagem só faz subordinar-se da maneira mais lacaia possível. Nessa espécie de roteirocracia disseminada – e ela geralmente é uma característica sintomática do cinema de arte, não do comercial –, pode até haver imagens, mas não há qualquer imagem.

Ruy Gardnier