O OLHO DE CLAIRE

Um huis-clos no qual aquilo que fica oprimido é o próprio talento e a estética da cineasta: essa bem poderia ter sido a definição de Sexta-Feira à Noite (2002), filme anterior de Claire Denis. Será que, depois de um começo de carreira extraordinário e da maturidade estilística com Bom Trabalho e Trouble Every Day viria o inevitável academicismo, a pasteurização de um estilo que parecia indomável? O Intruso é a muito bem-vinda prova em contrário, e uma espécie de correção de rota na carreira da cineasta. Uma espécie de culminação da carreira, um "best of" de momentos e atores (Benoît Magimel, Michel Subor, Katerina Golubeva, Alex Descas, Béatrice Dalle), a exacerbação de temas (a doença interior, os ermos ou lugares de passagem) e formas (a fragmentação em cenas fechadas em si mesmas, a parábola hipernaturalista do homem como animal) não inauguram uma nova fase, mas arrematam uma série de preocupações em fatura lapidada em sua paradoxal brutalidade. O Intruso parte de um pequeno e homônimo livro de Jean-Luc Nancy em que o autor relata, entre memória e especulação conceitual, o seu transplante de coração. Naturalmente, Claire Denis faz delirar as noções de intruso para todos os lados: para haver intrusão, é preciso que haja fronteiras, é preciso que haja corpos estranhos a um meio, é preciso que haja tensão. E as locações são tantas quanto os possíveis intrusos: Polinésia, França, Suíça, Rússia, Coréia... Com O Intruso, Claire Denis se conecta a algumas das redes mais estimulantes do cinema contemporâneo: a conspiração internacional com câmera transnacional (New Rose Hotel de Ferrara, demonlover de Assayas), o cinema das partes antes do todo (Mulholland Drive de Lynch), e eleva ao zênite seu próprio cinema táctil que erotiza tudo que está dentro do quadro: não só corpos (como fora acusada em Bom Trabalho) ou a doença (Noites sem Dormir, Trouble Every Day), mas uma verdadeira pansexualidade cinematográfica que Denis nos convida a experimentar quando nos mostra, sempre de perto demais, erupções de energia cujo sentido nos escapa.

Ruy Gardnier