MÁ EDUCAÇÃO
Pedro Almodóvar, La mala educación, Espanha, 2004

Construtor de um cinema sempre calcado na elaboração de cenas e diálogos, modelado ao máximo pelo roteiro e na montagem, com uma herança do teatro na disposição dos atores no espaço e na exposição da cenografia, e com um senso de cortes responsável pela musicalidade das conversas, Almodóvar tem dado sinais de disposição em expressar-se mais com a câmera, em dar à mise-en-scène um valor maior, sem com isso diminuir a importância do esqueleto verbal-cênico dos filmes. Esse desejo maior pela imagem é em Má Educação somado à obsessão pela representação. Nos filmes de Almodóvar, sempre há figuras narradoras-encenadoras (escritores, atores, cantores, performers). Sempre se mostra como a aparência esconde algo nela mesmo (não por trás dela). Má Educação, tomando como ponto de partida A Lei do Desejo, eleva a aparência a tema. E tanto a encenação como o roteiro propõe o jogo da representação dentro da representação.

Isso explica a insistência em filmar formas-enquadramentos, como as imagens de portas, grades, beliches, arcos de uma ponte e toda sorte de moldura para se explicitar a lógica das janelas dentro das janelas (da narrativa dentro de narrativa). O cineasta permanece, porém, um autor da palavra. É por meio das narrações escritas ou faladas que se desenvolve o jogo de simulações-revelações. A primeira se dá com a leitura do roteiro de Inácio-Angel pelo diretor Enrique. A segunda pela leitura de um romance de Inácio por parte de Padre Manolo, trecho este contido no roteiro escrito por Angel e lido por Enrique. A terceira pela narração falada do padre Manolo a Enrique. Além desses três personagens, há a narração ocasional de Enrique, que entra duas vezes como uma voz narradora, e há a narração sem voz de Almodóvar, olhar objetivo da narrativa, que organiza os desejos e atitudes desgovernados. Esse acúmulo de vozes e olhares inibe qualquer cobrança de rigor e coerência em relação aos narradores. Eles se sobrepõem, se sobrepujam.

Há um corte do letreiro inicial para um cartaz com o nome de Enrique Godet. Este corte aumenta ironicamente a proximidade entre diretor e personagem: Godet torna-se Almodóvar. Mas, na tela, o tom confessional-autobiográfico é exorcizado. Poucas vezes o cineasta manteve uma relação tão distante e racional, tão pouco emocional no tratamento estético de um roteiro. Conta-se uma história “qualquer”, não a história pessoal de Almodóvar, como tanto se escreveu, apesar das esquinas de percurso biográfico entre ele e os personagens (alunos de colégio de padre). Todas as paixões são racionalizadas no esquematismo dramático e narrativo com o qual Almodóvar vê de fora seu ponto de partida autobiográfico, É um filme da razão sobre a paixão, sem paixão pelo seu tema, mas pelo tratamento do tema. Almodóvar está apaixonado pela própria narrativa em Má Educação, pela capacidade de criar um jogo fabular com uma lógica matemática de roteiro, pela disposição de criar efeitos artísticos na construção dos planos e fusões. Resultaria disso um projeto afetado e inócuo se não houvesse paixão nessa experiência. Há. A beleza dessa paixão apenas desloca-se dos personagens para a forma. “Pasión” é, afinal, a palavra estampada na tela ao fim do filme, antes de ser seqüenciada por “Una Película de Pedro Almodóvar”.

Em geral despido de julgamentos sobre as atitudes dos personagens, mesmo as condenadas pelo senso comum, Almodóvar revela aqui menos afeto por suas criações humanas, mostrando-as agora com maior posicionamento dele como autor. Seu universo dramático valoriza o lado torto de cada um, ora por causa da paixão (o padre Manolo), ora por conta de uma funcionalidade (Juan-Angel), misturada à uma paixão por representar. O mundo não é de confiança em Má Educação. Mas a dignidade do cineasta está em julgar menos o padre bissexual, afinal movido por uma grande pulsão (chora ao ouvir o menino de seus sonhos cantando), e ser mais duro com o inventor de identidades de ocasião (Juan-Angel), que mantém-se cerebral mesmo em sua paixão pela simulação. Um está fora de controle; o outro tem controle sobre tudo. E o controlador Almodóvar, que tem amor sim por seus personagens, mas sempre os trata como marionetes humanizadas, certamente se vê em Angel-Juan (um manipulador de imagens e versões) mais até que em Enrique Godet, o manipulador que se faz de manipulado, mas no fundo realmente o é. E voltamos a essa questão da manipulação, quando, diante de máscaras gigantes e sorridentes, Juan pergunta a Manolo: “do que eles riem?” Resposta: “de nós”. Na resposta, fala a marionete, impotente diante de Deus (Almodóvar, em última instância).

Pelos cenários multi-coloridos, os personagens, com seus figurinos de cores fortes, desfilam suas aparências-despistes, uns manipulando os outros, outros manipulando por se fingirem manipulados, todos sabendo mais que demonstram saber. No lugar da femme-fatale, aquela figura sedutora e indigna da confiança do herói, temos um gay-fatale (Gael Garcia Bernal), cuja arma(dilha) está em, conforme a necessidade e por paixão pela simulação, mudar de identidade. Não é a primeira vez que o noir encontra o melodrama em Almodóvar: são dois gêneros dos quais o cineasta se serve bem, em sua abolição de qualquer fronteira entre alta e baixa cultura – seu universo, afinal e sobretudo, é o do imaginário B. Mas não se trata de emular convenções do noir, e, sim, limitar-se à utilização de sua dramaturgia, adaptando as sombras a um espaço solar não despido de sombras outras.

Cada novo filme de Pedro Almodóvar, desde a segunda metade dos anos 80, não é só um “novo filme de Almodóvar”, mas a confirmação ou a ameaça de um projeto artístico, um sintoma de seu progresso ou de seu declínio, a manutenção renovada da grife ou o indício de seu desgaste – e o fim de Almodóvar, ao menos como vitalidade artística, foi decretado ocasionalmente. Nos últimos anos, desde pelo menos A Flor do Meu Segredo, Almodóvar ganhou status de mestre (outra espécie de morte artística), graças sobretudo a Tudo sobre Minha Mãe e Fale com Ela, seus chamados filmes de maturidade, nos quais coloca todas as tensões internas em equilíbrio. Houve quem dissesse ou tenha escrito que ele não tinha mais como errar: era só ligar o piloto automático.

No entanto, em vez de optar pelo vôo fácil, sem turbulências no percurso, Almodóvar optou pela manobra arrojada, que, embora se sustente por um esquema rígido de organização criativa (mais ainda), não se poupa dos riscos da empreitada. Má Educação é um retorno do cineasta ao período de La Movida, nos anos 80, quando a cultura do travestimento tinha status libertário – uma reação ao represamento comportamental após quatro décadas de franquismo. Almodóvar, como artista, foi formado nesse momento histórico e nessa cena cultural de criações e atitudes sem limites delineados, e traz como herança até hoje, mesmo nos momentos mais sofisticados, algo da vulgaridade do baixo pop madrilenho – o qual transformou em arte, não sem perda de uma rebeldia sem muito freio, mas com a conquista de uma maturidade de estilo. A arte de confecção racionalista pode, como vemos em Má Educação, também ser uma aventura artística: talvez seja obra de teste, com seu risco procurado no esquematismo (com ameça de  esterilidade, de racionalismo excessivo). Talvez seja ainda o exercício de uma habilidade querendo provar algo a si mesma, querendo mostrar como pode se ter paixão no distanciamento, por mais paradoxal que isso possa parecer.

Cléber Eduardo