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                         A 
                          história começa em 27 de setembro de 2002, 
                          na sala 1 do Estação Botafogo. Ao meio-dia. 
                          Eternamente Sua, o objeto misterioso daquele 
                          e de todos os festivais por que passou, nos convidava 
                          a uma sessão de hipnose. Um convite que aceitamos 
                          não se sabe exatamente como – o filme simplesmente 
                          acontecia, e nós simplesmente íamos 
                          aonde ele indicava. Era confirmada, de uma vez por todas, 
                          a sobrevivência do cinema para além de 
                          qualquer constrição que a cultura visual 
                          favorecesse. A "polícia dos signos", 
                          treinada durante décadas para que nada escapasse 
                          a seu arsenal analítico, nada tinha a fazer diante 
                          daquela experiência que, à parcela legível 
                          das imagens, antepunha a beleza crua e direta dos seus 
                          significantes primários. Ao final de Eternamente 
                          Sua (Blissfully Yours, prêmio Un Certain 
                          Regard em Cannes 2002), todos como que saídos 
                          de um sonho bom, não podíamos mais exigir 
                          muita coisa dos filmes seguintes do festival (arrebatamento 
                          que se repetiria dois anos mais tarde, com Mal dos 
                          Trópicos).  
                           
                          Apichatpong Weerasethakul: soubemos de pronto que aquele 
                          nome esquisito deveria ser "aprendido" (logo, 
                          logo alguém teria o ímpeto de lhe emprestar 
                          um apelido internacionalmente pronunciável: Joe). 
                          Ao descobrir qual filme ele havia feito antes de Eternamente 
                          Sua, a conexão com o que, para nós, 
                          fora a "cena originária" não 
                          poderia ter sido maior: o primeiro longa-metragem de 
                          Apichatpong Weerasethakul se chama Objeto Misterioso 
                          ao Meio-dia. E é um filme que, apesar da 
                          câmera volta e meia assumir uma postura de reportagem, 
                          revela-se muito mais como bricolage do espaço 
                          e do imaginário nele incrustado (há mesmo 
                          algo de um "pensamento selvagem" no cinema 
                          de Apichatpong). Como todo filme dele, inclassificável; 
                          tanto documentário como ficção-científica 
                          – e nenhuma das duas coisas. A despeito de qualquer 
                          generalização que se possa tentar, a constatação 
                          fundamental é a de que Apichatpong filma o mundo 
                          num momento que antecede a separação e 
                          a organização diferencial de seus objetos. 
                          Um mundo em que as coisas ainda não receberam 
                          nomes, transposto para uma linguagem que, corrompendo 
                          a fórmula saussuriana ("em linguagem, existem 
                          apenas diferenças"), evolui por desdiferenciação. 
                          Antes de uma estrutura estática de nomes designando 
                          coisas, pessoas, lugares e eventos, os filmes de Apichatpong 
                          trazem um presente fugidio, composto por corpos que 
                          se banham na poesia imanente do tempo. Não há 
                          narrativa possível senão através 
                          do presente bruto, antinarrativo por excelência. 
                           
                           
                          É curioso que a história do que a obra 
                          desse cineasta desperta venha a ser uma história 
                          de intimidade. Ver Mal dos Trópicos cria 
                          o mais feliz dos paradoxos: de uma hora para outra, 
                          somos íntimos de um mistério. Conhecemos 
                          bem esse mistério: tão de dentro que se 
                          torna impossível transpor suas bordas. Como pode 
                          se dar isso, intimidade sem entendimento? Escrever-lhe 
                          uma carta não adiantaria, pois a experiência 
                          com Mal dos Trópicos é daquelas 
                          que não se pode partilhar nem com o autor. É 
                          muito mais uma experiência que se funda no contato 
                          direto com o sorriso do ator durante os créditos 
                          iniciais. Ele sorri olhando para nós; um sorriso 
                          tímido, mas infinitamente simpático. 
                           
                          A primeira parte de Mal dos Trópicos, 
                          que pode iludir o olhar com imagens relativamente conhecidas 
                          do cinema contemporâneo, não é em 
                          nada realista, não é uma abordagem objetiva 
                          a se contrapor à fábula mitopoética 
                          da segunda metade. Já está em jogo, mesmo 
                          nas passagens mais prosaicas daquela primeira parte, 
                          uma apreensão mágica do mundo (com a mesma 
                          carga naïf depois corroborada). Basta recapitular 
                          as cenas e perceber que tipo de relação 
                          o cineasta estabelece com esse espaço "não 
                          pré-estilizado": a visita à gruta, 
                          o cachorro encontrado na estrada, a cena musical com 
                          a cantora, a ida ao cinema, a sucessão de blocos 
                          narrativos mais ou menos soltos (desde um grupo de soldados 
                          achando um cadáver no meio do mato até 
                          o romance entre dois rapazes): tudo conflui para um 
                          sentimento oceânico de contigüidade total 
                          entre os seres, o tempo e o espaço. 
                           
                          Mal dos Trópicos foi prêmio da crítica 
                          na Mostra de São Paulo e, em maior ou menor intensidade, 
                          agradou também ao público em geral. Surpresa? 
                          Nenhuma: o contrário seria algo como não 
                          preferir vivenciar a imagem a apenas conhecê-la 
                          de vista. Seria tapar os ouvidos para aquela "canção 
                          de felicidade" que é cantada por "cada 
                          gota da alma". Seria deixar escapar por entre os 
                          olhos a chance rara de ver o mundo ser filmado enquanto 
                          está nu. E seria negar uma das maiores provas 
                          recentes da vitalidade do cinema. Dessa obra que vem 
                          se construindo de forma grandiosa, fica desde já 
                          a certeza de que dormir não é mais tão 
                          importante, pois Joe nos mostrou a possibilidade de 
                          sonhar ao meio-dia. 
                           
                            
                          Luiz Carlos Oliveira Jr. 
                          
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