ENTREVISTA COM MANOEL DE OLIVEIRA

Vinte minutos com Manoel de Oliveira: o que perguntar, de que forma se comportar? Presente em São Paulo para apresentar seu mais recente filme, O Quinto Império – Ontem como Hoje, que só seria exibido pela primeira vez no dia seguinte à entrevista. Oportunidade, então, para conversar sobre cinema, História e idéias – território verbal em que Oliveira sente-se muito confortável, diga-se de passagem. (RG)

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Estava lendo esse volume comemorativo da revista Trafic, que tem um artigo seu. Os editores falam que sentem-se culpados por serem franceses e não conseguirem achar a citação de Molière que o senhor faz no artigo "Repensar o cinema"...

Há trezentos anos, Molière disse que a palavra servia para explicar o pensamento, mas a palavra era o retrato das coisas. Das coisas e das pessoas. E também o retrato do pensamento. Isso foi dito por Molière há trezentos anos, e é qualquer coisa de extraordinário. Antes disso, um filósofo grego, Aristóteles, dizia que a alma não pode pensar sem uma imagem. É curioso que isto é muito antes de Molière, que dizia a mesma coisa por outros modos. Mas Descartes, que também é especialíssimo, diz também outra coisa que é muito interessante: "Não é menos verdadeiro o que se vê do que aquilo que se ouve". O interessante é que nossos sentidos não são inúteis. Nós podemos olhar para um objeto e nos parecer que é liso, mas é o tato que nos indica verdadeiramente se ele é liso ou se é áspero. É claro, a experiência dá a impressão, depois da visão, de que algo que se viu como liso continua sendo liso, e diz: "É liso". Mas pode estar enganado, ao pôr a mão, pode perceber outro objeto como áspero. Um era liso, o outro não... (risos)

São os paradoxos dos sentidos dos quais falava Diderot...

Não são paradoxos. São penetrações do conhecimento da razão humana. E dos sentidos. Porque a ilusão que nós temos de que o cinema é movimento é a origem da sua criação, mas não é a sua função, sua verdadeira função como arte. Ou aquilo que ela se tornou, depois ganhando a palavra e o som. Tornou-se uma síntese de todas as artes. Elas não estão lá ao mesmo tempo quando o que se vê não é o que se ouve, e o que se vê daquilo que se ouve não é o que se está a ver. Portanto, se sobrepuser uma imagem daquilo que se ouve sobre uma imagem daquilo que se vê, fica confuso, assim complica. Mas se não for assim, completam-se, enriquece a imagem. A gente está a ver duas imagens, ou, por assim dizer, duas idéias simultaneamente, sem se perturbarem uma à outra.

É curioso como o sr. parece utilizar-se de todas as artes. Eu me lembro particularmente de uma imagem da Leonor Silveira carregando uma cigarrilha em frente a um clin l’œil em Inquietude, em que ao mesmo tempo ela posa como uma figura, uma espécie de modelo, enfim, carrega tudo, cenografia, pintura, teatro... Parece que as artes não precisam brigar para constituir uma arte. Ao passo que o cinema, para se afirmar como uma arte específica, ele teve que lutar contra a literatura, a pintura... O sr., ao contrário, agrega todas elas.

Agrego, e é assim que tem que ser. No princípio, como era mudo, o cinema pretendeu realizar seus primeiros passos, no sentido da arte, como uma arte específica, querer expressar-se através de sua própria imagem. Algo mais próximo do sonho. O cinema era um sonho, porque o sonho não tem nem voz nem som, só tem imagem. O cinema mudo, para dar o apito da locomotiva que ia partir, tinha que filmar o vapor a sair e a gente sabia que era o apito. Hoje em dia a gente não precisa mais disso. O cinema, quando ganhou a palavra e o som, enriqueceu-se e sai do campo onírico para o campo real. Aproxima-se muito mais da vida. Não há nenhuma arte, nem o teatro, que iluda a vida como o cinema. Nem a pintura, nem a literatura, nem a arte abstrata. Quando você lê um livro, você é um realizador, porque está a pôr as imagens, a imaginar a cara dos atores, o vestir, o andar, tudo isso. Está a ver o seu filme. E geralmente quando o espectador lê o livro antes de ver o filme, como ele já realizou o seu filme, e ao ver o filme a tela não corresponde ao que ele realizou, ele já não gosta. Mas se não leu o livro e viu o filme, ele aceita. Depois vai ler o livro e ver no livro o filme que ele viu.

Gostaria de saber como o senhor trabalha com os atores, pois eles têm todos uma marca distintiva nos seus filmes.

Há um momento muito crítico para mim que é a escolha dos atores. Para a história que eu tenho, para o filme que eu vou fazer, tem um certo número de personagens. Personagens são uma ficção, não existem. Se eu faço, por exemplo, Napoleão, há várias figuras de Napoleão, vai-se procurar uma figura que pareça com Napoleão. Agora, quando são personagens de ficção e não existe nenhuma figura, a gente vai procurar aquilo que psicologicamente e fisicamente se aproxime mais do personagem que vamos ter. É um momento estruturante para o realizador, porque se não acerta, está tudo escangalhado. Quer dizer que, a partir daí, o ator passa a ser o personagem. Ele vai dar o seu corpo, a sua cara, a sua voz, seus gestos, suas atitudes, etc. Portanto, o personagem morreu, e agora é o próprio ator o personagem. É isso que faz com que, bem escolhido, ele faz o papel porque ele é o personagem. Naturalmente ele leu algumas páginas, algum livro, e, portanto, ele interpreta à maneira daquilo que ele leu e daquilo que sente como personagem. E a escolha favorece, se for bem feita. Se não for, desfavorece. Eu não gosto muito de dirigir os atores no sentido de mise-en-scène, dizer: "Diga assim, desta maneira, ou diga assim, de outra". Não. Eu gosto muito da espontaneidade do ator. Ele diz conforme ele sente o personagem que está a representar. Só o corrijo se sentir que é exagerado ou, pelo contrário, se sentir que é insuficiente, aí peço: "Seja mais forte", ou então "Seja mais brando". Mas é raro. Agora, o que eu faço é uma marcação. Sentar-se ali, sentar-se aqui, vai para acolá, porte-se assim, etc. Esses movimentos dão uma grande segurança ao ator. Se eu não disser nada, só "Faça", ele fica perdido. Se eu lhe der umas medidas, fica mais confortável para o ator, e a espontaneidade sai e é o melhor que o ator sai-se.

O seu trabalho de ator passa por uma relação de distanciamento, de não-identificação entre o espectador e o personagem.

Eu não quero confundir o espectador com o personagem. Consiga ou não consiga, o meu desejo é que o espectador não fique passivo, mas seja ativo. Muitas vezes eu peço ao ator para falar para a câmera, ou seja, para o espectador. Este, por sua vez, [em relação ao que o ator fala] acha bem, acha mal, aceita, não aceita, que, não quer, gostou, não gostou: o espectador precisa completar a ação que ele vê no filme. Gosto de fazer isso, e não de manipular o espectador, induzindo que ele fique sentimental e apaixonado por aquele personagem. Muita vezes há filmes que fazem simpatizar com o personagem mau, que faz coisas más mas torna-se simpático, e o filme toma a defesa deles. Muitas vezes é o contrário, eles querem levantar-se da cadeira e bater nele com um pau. E o cinema moderno tem essa tendência, sobretudo o cinema americano, de manipular o espectador, fazendo dele um joguete, e ele sai do filme como se tivesse tomado uma droga.

Os seus filmes dão muita importância ao gesto estático dos atores. Da mesma forma que o senhor toma uma arte dinâmica e declamatória do teatro, acredito que o senhor toma esse poder estático da pintura, de um gesto que seja a síntese de movimentos...

Eu não tomo nada nem do teatro, nem da pintura. Eu gosto imenso da pintura, mas, vá lá, eu faço os meus quadros com os meus enquadramentos, eu não sigo nenhum pintor. É claro que sou naturalmente influenciado pela literatura, pela pintura, pela música, todas essas coisas me influenciaram e me educaram, mas eu faço à minha maneira. Quando faço o quadro, não quero fazer à maneira de Velázquez ou à maneira desse ou daquele. Faço como sinto que devo fazer, como me parece melhor.

Um filme que me impressiona muito é Um Filme Falado, seu trabalho anterior a O Quinto Império. Nele, temos a força da palavra, e das línguas européias. Fiquei pensando que, além da temática da incompreensão entre ocidente e oriente, o filme desenvolve em paralelo a questão da língua portuguesa e do papel de Portugal dentro da comunidade européia.

Não creio que se trata disso, e não são as línguas européias que estão lá todas. O filme baseia-se sobretudo na civilização ocidental. E a civilização judaico-cristã greco-romana, e de natureza mediterrânea. Essa é a nossa civilização. Depois da derrota da invencível armada, os ingleses tomaram o poder do mar, que antes pertencia à península, apoderaram-se da civilização ocidental, e dominaram durante muito tempo. Depois da [Segunda] Guerra, mudou para Washington, hoje está na América. Mas a civilização que lá está é judaico-cristã greco-romana, e mediterrânea. Ora, as mais fortes contribuições, aquilo que eu quis mostrar, são aquilo que lá está: a Grécia, Itália, os árabes, que distribuíram para a Europa inteira a cultura grega, e a Península [Ibérica], pelos descobrimentos. Há uma parte mais ao Norte, com a Holanda e a Inglaterra, que é a parte humanista. Mas o que os humanistas fizeram em teoria, os descobrimentos fizeram na prática: descobriram vários países, deram-se com os nativos, casavam mesmo com esses nativos, e portanto houve uma expansão humanística na prática. O que caracteriza o Renascimento é o norte com o humanismo, a Itália com as artes e a Península com os descobrimentos. Um Filme Falado faz a relação das civilizações com os países árabes. A civilização ocidental e os países ocidentais se formaram em luta contra os muçulmanos, expulsando-os da Europa. Agora, são os muçulmanos que querem retornar à Europa, ou para o ocidente. Há a questão do terrorismo. Os árabes já estiveram de um lado e de outro, e este meu filme, sobre Dom Sebastião [O Quinto Império], tem um mito que é também árabe, que é o do Encoberto, que virá no fim dos tempos para dar a harmonia e combater o mal.

É um final muito apreensivo o de Um Filme Falado. Existe um medo de que se perca tanto a História quanto a convivência entre os povos. É um final apocalíptico.

Apocalíptico, tens razão. Mas ao lado disso, e de um lado mais simples e mais profundo, há a posição do capitão. O capitão, como se sabe, é o último a sair do barco. No filme, ele, já no bote, vê que há passageiros, e que era ele que devia estar lá. De maneira que ele está numa posição moral muito difícil. Então ele deveria voltar lá e salvar a mulher, mas é impossível, porque é tarde. E, além disso, ele vê a destruição de seu barco, que é a sua história, a sua casa, sua vida. Ele vê a destruição de tudo.

É a Europa mediterrânea toda que está no navio...

Sim, no fundo, é o mundo que se perde.

O Serge Daney dizia que, como postura de homem que vê as imagens, sempre quando ele vê uma imagem, um plano, ele buscava aquilo que seria o contra-plano, o elemento que estaria de fora fazendo tensão para dentro. Ele dizia que o cineasta que ensinou ele a ver isto era o Godard, que tem uma postura dialética, ou socrática, se se quiser, colocando dois lados para se combater. Fazendo uma comparação pouco usual com o cinema do sr., acredito que o senhor também tem um trabalho do choque, mas onde o Godard tenta ver política o sr. tenta ver a História. No seu cinema, a dinâmica dos contrários funcionaria menos na oposição do que na acumulação.

Na apresentação de seu novo filme, Kiarostami falou que a tragédia precisava de uma máscara.

A frase de Nietzsche, "Tudo que é profundo precisa de uma máscara".

Isso. Aqui, há uma confusão entre o Godard e esta frase. A máscara mostra o que não se dá a ver. Ou seja, ela mostra o que está por trás da máscara. No sentido do Daney, que eu respeito muito, e no do Godard, a dialética tem uma função marxista. Como ambos são de tendência marxista, jogam nesse sentido. Aprecio muito tanto o Godard quanto o Serge Daney, mas neste particular prefiro Nietzsche, que é mais rico: "A tragédia está por trás de uma máscara". Não é o que a gente vê: é o que a máscara mostra, algo não visível. Se o Aristóteles diz que não se pode pensar sem ter uma imagem, também a gente, quando vê uma imagem, vê através dessa imagem um pensamento. A imagem é máscara que nos dá o pensamento. Invertemos a posição. Quando o capitão em Um Filme Falado vê explodir a sua casa, ele vê um pensamento: "Eu deveria estar lá. Eu, moralmente, estou em falta. Por outro lado, também se vê, ou ouve-se a destruição de todo o seu barco, que era a sua vida, que ele governava, que ele orientava, que ele guiava contra as tempestades, fazia bem para os passageiros, etc. É uma máscara que transporta não ao navio, mas à casa; não à casa, mas à cidade; não à cidade, mas ao país; não ao país, mas ao continente; não ao continente, mas ao universo.

O senhor já tratou do sebastianismo em um filme como Non ou a Vã Glória de Mandar. Existe alguma relação em O Quinto Império ou é algo completamente diferente?

É outra coisa. O Quinto Império é um filme muito difícil de fazer porque é tirado de uma peça de teatro muito rica. E lá está a máscara de tudo. Por trás dos diálogos, está todo este universo mítico, e toda a idéia do Quinto Império. A idéia do poder para encontrar a harmonia. A região encontrou com a outra região, o país se encontrou com outro país para encontrar o mundo universal, que é o tal mito do quinto império.

Entrevista realizada por Ruy Gardnier no dia 29 de outubro de 2004, em São Paulo, Hotel Crowne Plaza