CRIMES DE UM DETETIVE
Keith Gordon, The Singing Detective, EUA, 2003

Fora do tom: o que os críticos ignoraram em Crimes de um Detetive

É um sinal dos tempos o fato de Crimes de um Detetive (The Singing Detective, 2003), de Keith Gordon, não ter sido apreciado por aquilo que é. A comunidade crítica mainstream se pronunciou e o filme foi tido como: a) uma pobre imitação hollywoodianesca de uma grande mini-série (de Dennis Potter e Jon Amiel) 1 ou b) não tão engraçado quanto Chicago (Rob Marshall, 2002) ou Moulin Rouge (Baz Luhrmann, 2001) 2. Em nenhum lugar, que eu saiba, o filme foi analisado como parte significativa de uma obra – especificamente a obra de seu diretor, uma das mais interessantes vozes atuais do cinema americano. A crítica de A.O. Scott no New York Times 3, por exemplo, menciona o nome de Gordon duas vezes: uma no corpo da crítica, para identificar o diretor, e outra na lista de créditos. Mais comumente, o filme foi analisado em termos de como ele se relaciona com a vida pessoal de Robert Downey Jr., seu ator principal; são paralelos interessantes, mas acontece que Downey não é o autor desse filme.

Gordon é um antigo ator que apareceu em uma penca de diferentes filmes de autor dos anos 70 e 80 (notadamente Terapia de Doidos [1979] e Vestida para Matar [1980], de Brian De Palma, O Show Deve Continuar [1979], de Bob Fosse, e Christine, o Carro Assassino [1980], de John Carpenter). Desde que passou para a direção, em 1988, ele fez cinco filmes que demonstram uma visão espantosamente consistente. Na corda-bamba do cinema genuinamente independente, Gordon tem sido de alguma forma capaz de constituir um padrão de grande pureza e singularidade da mente. Ele resistiu ao impulso de fazer projetos por dinheiro ou fama, assim como se recusou a se acomodar como mão-de-obra assalariada e injetar alguns toques refinados em sub-mercadorias de Hollywood, como Steven Soderbergh fez na ocasião. Isso torna a recusa dos críticos em ver Crimes de um Detetive não como um remake fracassado ou um Chicago fracassado, mas como um filme interessante e bem-sucedido de Keith Gordon, ainda mais vergonhosa.

Gordon tende a gravitar em torno de protagonistas que estão encarcerados: na high school (The Chocolate War, 1988, seu melhor filme); na insensatez da guerra (A Midnight Clear, 1992); nos paradoxos do patriotismo (Mother Night, 1996). Sua mise-en-scène reflete as armadilhas em que seus personagens são capturados: influenciado por Stanley Kubrick, ele prefere composições simétricas e lentas, zooms precisos que enfatizam personagens existindo dentro de – mais do que controlando – um dado espaço. Em Crimes de um Detetive, Dan Dark (Robert Downey Jr.) não pode escapar de sua armadilha – ao menos não de início – porque a armadilha é essencialmente ele mesmo. Superficialmente, é sua pele; Dark – um escritor de ficção noir barata – está sofrendo de um terrível caso de psoríase, que, quando o filme começa, cobre seu corpo inteiro e torna doloroso até o mais singelo movimento. O cinema de Gordon nunca tinha sido tão nauseante ou "clínico" em sua perfeição formal como nas cenas de Dark definhando numa cama de hospital. Mas seu problema não é só com sua pele; como o hippie coroa que é seu analista (Mel Gibson careca) comenta com Dark lá pela metade do filme, doenças da pele são inevitavelmente vistas como um sinal de doenças da alma.

A alma de Dark está certamente adoentada. Ele é o personagem mais odioso que Gordon já filmou. Geralmente seus protagonistas são simpáticos por sua ingenuidade em um mundo cruel – ou dignos de pena por isso. Dark não é nenhum dos dois porque temos a impressão de que ele é em grande medida o facilitador – se não o construtor – de sua própria infelicidade. Ele odeia as mulheres, incluindo a esposa devotada (Robin Wright Penn) de quem ele suspeita de traição. É comum no trabalho de Gordon a personagem feminina emergir como uma espécie de salvadora para o protagonista masculino; isso é tão verdadeiro aqui quanto sempre foi, mas há uma longa e difícil estrada antes desse protagonista masculino poder reconhecer que sua esposa preenche tal posição. O desprezo de Dark não é gênero-específico, contudo: ele parece odiar toda a humanidade. Poderia-se dizer que Dark se amargurou devido à sua condição de hospitalizado, se não se suspeitasse fortemente de que mesmo a saúde física completa não alteraria sua visão de mundo.

Para escapar à dor e à angústia de sua existência diária, Dark cria fantasias em que se encontra na pele do maneiroso detetive dos romances que escreve. Essas seqüências das fantasias – de natureza amplamente musical, embaladas por standbys dos anos 50 tais como "How much is that doggy in the window" – formaram a espinha dorsal das críticas que desmereceram Crimes de um Detetive. O próprio Gordon me confirmou que uma das questões mais freqüentes nos banquetes de imprensa era a de como ele se sentia fazendo um musical na esteira de Chicago. Mas mesmo evocar Chicago – ou Cantando na Chuva (Stanley Donen, 1952) ou Meet Me in St. Louis (Vincent Minnelli, 1944) ou The Pirate (Vincent Minnelli, 1948) ou Les Demoiselles de Rochefort (Jacques Demy, 1966) – numa discussão sobre Crimes de um Detetive é uma total má interpretação dos intentos básicos do filme. As seqüências musicais em Crimes de um Detetive são antes de mais nada seqüências de fantasia – imaginações de uma mente atormentada (e medicada!). Isso lhes rende uma qualidade fraturada, onírica; em muitos momentos, realidade e fantasia sobrepõem-se literalmente enquanto Gordon utiliza artifícios tais como cenários flutuantes para enfatizar de que modo as fantasias de Dark brotam diretamente de sua mente (e são estreladas pela equipe do hospital, somada a outros "personagens" inspirados por pessoas de sua vida real, passada e presente). É a falha de muitos críticos em reconhecer que esse é o intento de Gordon que, como eu suspeito, está por trás de muitos dos equívocos em relação ao filme. Crimes de um Detetive é um musical admitidamente pobre, o que significa tanto quanto dizer que é um terrível western; o filme não tenta se encaixar em nenhum gênero, mas antes se manter fiel à psique de seu protagonista.

Retruquei a primeira das duas maiores queixas endereçadas ao filme de Gordon. A outra (de que o filme é uma imitação hollywoodianesca de uma grande mini-série) é predicada numa idéia que achei tão burlesca que quase indigna de resposta: que um grande filme (ou uma série televisiva, no caso), uma vez perfeito, não possa ser re-concebido ou re-imaginado por outro artista. Acho essa idéia burlesca porque ela a priori desmerece alguns dos melhores filmes já feitos. Jejum de Amor (1941), de Howard Hawks, foi um "remake" (no léxico de hoje) – mas alguém pensaria em denegri-lo a partir disso? Na verdade, quantas vezes é mencionado que The Front Page foi previamente encenado como filme antes de Hawks pôr suas mãos no projeto (e simplesmente 10 anos antes disso!)? A pura grandiosidade do filme de Hawks torna tais questões irrelevantes.

É claro que fica inteiramente a cargo do espectador julgar se Gordon alcançou uma grandiosidade comparável em sua re-imaginação de Crimes de um Detetive. Mas os críticos não podem estar em posição de fazer um ou outro julgamento até que comecem a olhar para o filme a partir do que ele é. "O que o filme é", antes de mais nada, é o mais recente filme de Keith Gordon, trazendo não apenas alguns dos mesmos temas que correm através de seus filmes, como discuto acima, mas também outras marcas registradas de seu estilo. Os saltos no tempo do filme – do presente ao passado e ao mundo de fantasia de Dark – refletem o interesse de Gordon pela narrativa não-linear (mesmo The Chocolate War, que conta sua história mais ou menos convencionalmente do início ao fim, possui interrupções sob a forma de sonhos ou seqüências de fantasia). Mas é ainda algo mais que o filme de Gordon: é Dennis Potter, também, pois algumas das mudanças mais significativas da mini-série para o filme – notadamente a inclusão de uma espécie de final positivo (eu não diria "feliz") – são dele.

Peter Tonguette

(traduzido do inglês por Luiz Carlos Oliveira Jr. Originalmente publicado na revista eletrônica
"Senses of Cinema"
)

Notas:

1. "... o que leva esses cineastas a mexer com um sucesso já comprovado?", perguntou Marjorie Baumgarten, num sentimento ecoado por tantos outros. Ver Baumgarten, "The Singing Detective", The Austin Chronicle, 5/12/2003, acessado em 14/01/2004.

2. Na verdade, poucos críticos disseram isso explicitamente (embora uma crítica cambaleantemente insípida de Johnny Donaldson diga, amargamente, que "isso não é Chicago – isso nem mesmo é Moulin Rouge"), mas é uma atitude que parece abalizar queixas sobre a estrutura entalhada do filme – a forma como os números musicais parecem introduzir as seqüências "reais" – e a qualidade de "teatro amador" (termo de Paula Nechak) dos números em si. Ver Donaldson, "Singing in the wrong key", The Massachusetts Daily Collegian, 9/12/2003, acessado 14/01/2004, e Nechak, "The Singing Detective hits the wrong notes", The Seattle Post-Intelligencer, 7/11/2003, acessado em 16/01/2004.

3. A.O. Scott, "Film Review; A pulp novelist’s dreams invade a distressing reality", The New York Times, 24/11/2003, acessado em 14/01/2004..



(DVD: Paramount)