WADI 1981-1991 / WADI GRAND CANYON
Amos Gitai, Wadi dix ans aprés/ Wadi Grand Canyon
Israel/França/Inglaterra, 1991 / Israel/França, 2001

Há dois anos, foi exibido na Mostra de São Paulo o mais recente (difícil falar em último) episódio desta série de filmes de Gitai sobre uma determinada área empobrecida nas proximidades de Haifa. Na ocasião, eu mesmo escrevi um texto onde o que mais sobressaía era a dificuldade de se ler todos os signos e compreender todas as referências ou lógicas estruturais daquele documentário (Wadi Grand Canyon), sem ter tido acesso aos episódios anteriores. Pois bem, neste ano podemos retomar o contato não só com o mesmo filme já visto antes, como com o filme que junta seus dois episódios anteriores (Wadi 1981-1991) - e, mais do que isso, junto também com uma retrospectiva bastante abrangente dos filmes de Gitai como um todo, o que ajuda mais ainda a contextualizar uma série de suas preocupações, métodos e objetivos ao filmar. Curiosamente, vale a observação, mais uma vez os filmes foram vistos fora de ordem (por circunstâncias de sua exibição), o que de alguma forma impediu, ainda, um visionamento do último episódio a partir do que veio antes. Mas, pelo menos já foram vistos num espaço de tempo bastante próximo.

Sendo vistos nesta proximidade, o que mais impressiona perceber é uma certa interiorização da câmera de Gitai no espaço dos personagens de seus filmes. As primeiras imagens, colhidas em 1981, lembram muito a de uma série de documentários sociais brasileiros sobre o estado de miséria, reportando de fora as condições ultrajantes em que vivem vários dos personagens retratados. Entretanto, na medida em que Gitai vai se tornando mais íntimo das pessoas que filma, o seu filme vai abandonando um pouco este olhar de fora, e acreditando cada vez mais em dar a palavra a seus entrevistados (num processo que lembra muito, principalmente no Grand Canyon, mas não só, o cinema de Eduardo Coutinho), e que é no simples falar para a câmera destes que ele vai conseguir extrair o maior significado possível daquilo que ele deseja mostrar.

E o que ele deseja mostrar? Nada de muito diferente do que seu cinema vem reafirmando seguidamente: as complexas relações sócio-históricas dos povos judeu e palestino dentro de Israel. No caso destes filmes, podemos antever na realidade que o documentário retrata uma série de temas que voltariam depois ficcionalizados por Gitai, como o casamento entre judeus e árabes (presente, principalmente, em Yom Yom), como a relação com os imigrantes de outros países (visto bastante em Alila), como as questões relativas às perdas e dificuldades de relacionamentos (algo sempre presente em sua ficção), ou, para falar de uma temática mais visual, da exploração dos espaços das construções e da arquitetura como símbolos tácteis da História da região (algo presente em quase todos os seus filmes, e aqui onipresente - das ruínas que surgem no início do primeiro filme ao shopping center que assombra o final do mais recente).

Então, através não só das palavras, mas dos jogos de relacionamentos que se estabelecem diante de sua câmera (do pai árabe com a filha, do marido árabe com a mulher judia, da esposa árabe com o marido), Gitai consegue traçar nestes filmes uma tapeçaria muito rica de complexidades humanas que, nunca abandonando a especifidade de cada um dos entrevistados (algo que nem sempre suas ficções conseguiram manter), consegue emprestar a eles um significado para além de cada um. E o que sobressai é o que quase sempre sobressairá quando se mostra as pessoas de lá de frente: que parece tão insano quanto absolutamente compreensível (pelas circunstâncias históricas) que dois povos não consigam encontrar um espaço e uma possibilidade da vida em comum. E que é sempre presente a dualidade de sensações: entre o quão simples deveria ser resolver algo assim (em se tratando de seres humanos conscientes), e o quão impossível soa que se possa resolver algo tão entranhado (histórica, social, religiosa, e pessoalmente).

Eduardo Valente