VERA DRAKE
Mike Leigh, Vera Drake, Inglaterra/França, 2004

Mike Leigh é um demagogo. Só ele seria capaz de, para filmar uma parideira ilegal na Inglaterra dos anos 50, tomar a primeira hora inteira de seu filme mostrando como ela é boa para a comunidade a seu redor, como ela é o elemento de agregação de sua família, como ela é boa de coração, como pode faltar dinheiro e espaço naquela casa de família proletária, mas todos têm um excelente coração e uma convivência primorosa. O marido de Vera, Stan, diz várias vezes aquilo que já sabíamos porque Mike Leigh faz questâo de nos lembrar a todo instante: "Tivemos tanta sorte". Em contraposição, nas casas burguesas (em que Vera trabalha como doméstica) ou nas aburguesadas (a do irmão de Stan, cooptado em parte para o lado negro da força por uma esposa ninfomaníaca, interesseira e que não se importa com os dramas das pessoas a seu redor), impera o reino dos atos impuros: um estupro, uma relação sexual estabanada, mas acima de tudo a impessoalidade e a assepsia não-humana. Está provado que é preciso ser pobre para ser feliz. Vera Drake ajuda as pessoas: ela "helps young girls out", realizando nelas abortos para evitar os filhos que elas não podem ter. A prática é ilegal, Vera sabe disso, mas ela se sente no dever de fazer alguma coisa por essas garotas. Ela não ganha dinheiro com a atividade. Quem lucra com essa atividade é Lily, amiga de Vera que agencia as meninas e cobra dinheiro sem que Vera saiba disso. De todos os tipos de aborto ilegal, a prática utilizada por nossa protagonista é a seringa, a mais segura – que consiste em encher as moças de desinfetante e esperar nos dias seguintes que o sangue desça –, mas isso não impede que uma dessas "young girls" quase morra no dia seguinte à intervenção. A polícia é chamada e Vera é presa.

Mike Leigh tem um programa, uma visão de mundo que ele deseja passar para nós custe o que custar. Pouco importa se os fatos vão contra sua proposta: pior para os fatos. Para nos compadecermos por Mrs. Drake e seu drama, para nos mostrar a hipocrisia da sociedade inglesa, ele nos mostra – sem verdadeira conexão com a história narrada, vale dizer – um aborto conduzido por um médico, com uma taxa abusiva e direito a consulta psiquiátrica em que a personagem precisa mentir para conseguir sua operação. Toda essa subtrama, fica claro, só existe para que nossa santa Vera pareça ainda mais pura, pela humildade de seus instrumentos contra a máfia institucionalizada do aborto nos meios sociais mais altos. Que Vera Drake faça seus abortos por pura bondade, isso está fora de discussão. Que ela os faça porque há pessoas necessitando de ajuda, idem. Mas Mike Leigh adora se exceder, e comete uma série de impropriedades lógicas para fazer valer seu peixe "humanista" de defesa do modo-de-vida da classe trabalhadora. A personagem de Lily, por exemplo, desaparece do filme assim que denuncia Vera. Desaparece do filme e do discurso: ela não é denunciada junto com Vera pela prática, e ninguém chega a questionar Vera o fato de ela nunca ter se questionado sobre a motivação que sua colega tinha ao agendar os abortos.

Mike Leigh acredita que tiques compõem um estilo. Assim, se Imelda Staunton tem uma interpretação fabulosa, todos os personagens que circulam em torno dela são identificados mais por traços caricatos de comportamento – jogar a boca pro lado ao falar, ser incapaz de olhar no rosto dos outros – do que por um detido trabalho de personalidade. A essa característica desagradável e presente ao longo da carreira de Leigh, Vera Drake acresce um novo dado, a pieguice. Nunca o cinema de Mike Leigh foi tão baixo em utilizar momentos dramáticos e música lacrimejante para fazer o espectador se emocionar. Nada contra filmar uma tragédia humana das mais pungentes, nada contra fazer um libelo pró-aborto, mas a estratégia de santificar um personagem apenas como forma de fazer passar um discurso antes de se ater ao drama é uma atitude de cineasta das mais sofríveis que se pode fazer. A nosso cronista social da classe trabalhadora falta a arte da perspectiva, de colocar todos os atos da cadeia social em sua respectiva posição. Mike Leigh é no fundo um maniqueísta, e se o mal se instaura no seio de uma comunidade proletária, a culpa é sempre dos outros. Santa Vera, em toda sua bondade, precisa de um quinhão de autismo – autismo que Leigh tenta sempre conjurar – para que acreditemos que ela não sabe que faz parte de uma cadeia de causalidade em que o dinheiro acaba se inscrevendo. Autismo que o próprio Leigh decide não colocar em sua narrativa, sempre tão bem alinhada no que mostra e no que não mostra que arrisca por momentos até zombar da inatividade da protagonista. Autêntica obra de má-fé, Vera Drake representa mais do que qualquer outro filme a falência artística de Mike Leigh.

Ruy Gardnier