UM VAZIO NO MEU CORAÇÃO
Lukas Moodysson, Ett hal i mitt hjarta, Suécia, 2004

Lukas Moodysson fala aos quatro ventos: "Meu cinema não tem nada a ver com o Dogma". Em seus filmes anteriores, apesar dos cacoetes de um certo cinema despojado e forçosamente seco (câmera tremida, jump-cuts, uso do som direto estourando cada detalhe, relações humanas em crise), Moodysson de fato reservava um local de acolhimento para seus personagens (principalmente em Amigas de Colégio e Bem-vindos) que os dinamarqueses dogmáticos dificilmente teriam o ímpeto de oferecer, assim como o papel de destaque que ele concedia à música não-diegética o excluía de uma das regras básicas do tal manifesto. O último filme de Moodysson trazido ao Brasil, Lilya 4-ever (passou no Festival do Rio e na Mostra de SP de 2002, e ainda teve exibição recente no CCBB), já prenunciava, contudo, um deslocamento desse espaço de proteção para um mundo que no final se revelava ainda mais cruel e hostil do que se poderia pressupor de início, quando os personagens tentavam sair de situações adversas. A tortura imposta à personagem de Lilya, uma menina russa de 16 anos que é aliciada por um escroque e levada para ser prostituta na Suécia, aparecia lá ilustrada pelos signos mais famosos do capitalismo (comentário sócio-político por si só óbvio e emparedado na própria indignação). Moodysson mostrou que estava ficando sério, queria parar de fazer filmes "sessão da tarde" – o que Amigas de Colégio e Bem-vindos o são, mesmo que numa chave mais liberal – e se transportar ao cinema de choque estético e da deflagração dos absurdos sociais e existenciais.

Péssimo para ele: Bem-vindos é tanto seu filme mais light quanto seu melhor, talvez o único realmente interessante quando sua obra é observada em retrospecto. E Um Vazio em Meu Coração é tanto seu filme mais agressivo quanto uma das piores coisas já feitas. A seqüência de Lilya 4-ever em que são mostrados os clientes da protagonista, um a um, agredindo-a e insultando-a, já era algo de muito torpe, mas o filme como um todo não tinha aquele tom e mesmo o histórico de Moodysson não permitia concluir que ele enveredaria agora por tamanho equívoco. Um Vazio em Meu Coração é o que pode haver de pior no cinema contemporâneo: estética propositalmente tosca, mas que (vergonhosamente) lá pelo meio do filme tenta achar uma seqüência poética; planos longos que não filmam nada porque partem do pressuposto de que não há nada para ser filmado (fazer da vacuidade o local de chegada do cinema, e não tentar extrair o que pode haver de cósmico de uma situação aparentemente banal); crítica à transparência da cultura da pornografia na linha de raciocínio mais burra que pode existir (pior até do que Violência Gratuita, de Michael Haneke); progressão de nojeiras que no fundo só querem testar a resistência do espectador (do tipo "vamos ver até onde vocês agüentam"). E por aí vai. Tudo temperado, é claro, por freudismo de botequim e existencialismo de fim de noite em festa ruim.

Um Vazio em Meu Coração é uma sucessão de cenas dentro do apartamento em que vive a família disfuncional composta de três adultos – cuja única ocupação consiste em vídeos pornôs amadores – e um adolescente problemático. O filme nem chega a ser nocivo, porque dificilmente alguém o leva a sério – mas a questão é que Moodysson pensa estar dizendo algo. Na cena em que a mulher da casa (os outros dois adultos são o pai do adolescente e um amigo) sai para fazer compras, os rostos das outras pessoas no supermercado aparecem embaçados da mesma forma que as partes íntimas dos personagens do filme haviam aparecido nas cenas no apartamento. Essa contextualização, que acusa a prática do capitalismo de ser obscena e a imagem cinematográfica de ser pornográfica em qualquer situação – uma vez que expõe a público os semblantes das pessoas (questão que Serge Daney, por exemplo, já tinha analisado a fundo nos anos 70) –, ainda mais feita assim, de maneira tão pouco sutil e desnecessária, mostra o quão atrasado e superficial Moodysson se acha em seus questionamentos. Um Vazio em Meu Coração às vezes soa como um Jackass psicológico, mas só não passa como piada porque: 1) não tem graça e 2) impõe ao espectador um estado de asco que obstrui a passagem de qualquer comicidade.

Há um cartaz espalhado pela central de venda de ingressos e pelos cinemas onde está acontecendo o festival que alerta para o conteúdo forte e polêmico de Um Vazio em Meu Coração. Mas é preciso que se acrescente o principal: trata-se de um filme que só não é totalmente desprezível porque reúne e maximiza um conjunto de sintomas que uma parte (a menos louvável) do cinema contemporâneo já vinha apresentando. O fato do clímax do filme ser a cena em que um homem vomita dentro da boca de uma mulher ao som de A Paixão Segundo São Mateus, de Bach, diz muito sobre suas intenções, limitações e, acima de tudo, sobre sua estupidez. Estranho caminho este por que Lukas Moodysson optou.

Luiz Carlos Oliveira Jr.